I. No dia em que uma sondagem publicada nos media de referência coloca em primeiro lugar das intenções de voto um movimento cívico não-alinhado, deixando o partido do poder a sete por cento e ultrapassando o até então maior partido da oposição, percebemos que a coisa é séria. Desagradados com os resultados da governação do PP, os espanhóis, que também ainda não recuperaram dos últimos anos de governo PSOE, viraram-se sem reservas para um grupo de académicos e intelectuais agregados sob a designação de inspiração Obama “Podemos”. E o que é que podem estes senhores que os partidos tradicionais não podem?
II. Para começar não são políticos e parece que isso, hoje em dia, é quase um dom. Bom, não é bem que não sejam políticos. Eram-no de alma, mas não praticavam. Pablo Iglesias e Juan Carlos Monedero, os rostos mais visíveis do movimento, são professores universitários de Ciência Política, na Universidade Complutense de Madrid, e presença habitual nos principais programas televisivos de debate político. Como tal, ganhavam a vida a refletir sobre e a falar de política, mas não eram agentes responsabilizáveis pelo que se ia passando. Agora são.
Depois, fazem questão de, recorrendo às mais modernas técnicas de marketing político e aos mais recentes meios de comunicação interativos, com particular incidência para as redes sociais, cavarem o fosso entre a sua atividade cívica e aquilo a que chamam “casta política”. Iglesias, o mais carismático do grupo, nunca se refere diretamente aos adversários políticos, e os documentos do “Podemos” englobam sempre os dois partidos mais tradicionais de Espanha numa só sigla, “PPSOE”.
Por fim, há a mensagem. Muito direta e muito próxima daquilo que preocupa as pessoas. No seu Programa Colaborativo, como gostam de chamar ao seu manifesto eleitoral, destacam seis eixos para construir a Democracia, da economia à reforma agrária e à fraternidade. Defendem uma auditoria cidadã à dívida, a criação de uma “Agência Pública Europeia de Rating”, a recuperação do controlo público de setores estratégicos da economia, como as telecomunicações, a energia, os transportes e a educação, e de um rendimento mínimo atribuído a todos os cidadãos “pela simples razão de o serem”. Simples, apelativo, ainda que pouco fundamentado.
Do ponto de vista eleitoral, elegeram cinco eurodeputados e, em apenas oito meses, colocaram-se à frente na corrida pelo Governo de Espanha. 66% do eleitorado tem mais de 35 anos, 56% costumava votar na Esquerda Unida e 30% no PSOE, 50% tem emprego e 21% formação superior. Não parecem, por isso, constituir apenas um epifenómeno ou um partido “flash”, como se costumam designar os partidos da moda, que brilham num só ato eleitoral e depois se desvanecem.
Quando lhes perguntam, dizem que se chamam “Podemos” porque todos os outros dizem que não se pode.
III. Isso significa que não estão condicionados por qualquer passado político, por uma malha ideológica ou por uma teia de interesses associados. Ao contrário do “Livre”, em Portugal, demasiado associado a uma só figura e aos divisionismos do Bloco de Esquerda, não têm de prescindir de nada para dizer o que pensam, nem conceder em nada para defender o que querem. Até serem poder.
Muito provavelmente, o “Podemos” terá de participar, quem sabe até na condição de partido maioritário, na solução de poder que vier a sair das eleições espanholas do próximo ano e aí, posto perante a inelutável missão de decidir com consequências, terá certamente maiores dificuldades em manter-se firme em todas as convicções.
Até lá, porém, fica mais um aviso sério a quem pensar (se é que ainda há quem pense) quese pode continuar a mudar qualquer coisa para que tudo fique basicamente na mesma. Não se deve e, sobretudo, já não se pode. A Casa de Salina perdeu. Terá ganho a cidadania militante. Pelo menos enquanto os partidos tradicionais pensarem: “Podemos, mas não sabemos se queremos”.