Opinião

os (nossos) filhos

fui pai pela primeira vez no dia 21 de agosto de 2007. depois, a 15 de abril de 2014 e, mais recentemente, a 30 de agosto de 2018. portanto, a 21 de agosto deste ano, celebro 15 anos de parentalidade. 15 anos em que deixei de ser o “filho do geraldo” para me tornar n’“o pai do tomás”, mais tarde n’“o pai do mateus” e n’“o pai do dinis”. não deixamos de ser quem somos – nem deixo de ser “o rogério” – mas os filhos acrescentam-nos uma existência que acrescenta muito para lá da nossa.

longe de ser o melhor pai do mundo, e consciente de que não deve ser esse o meu objectivo, esforço-me todos os dias por ser o melhor pai que consigo ser e dar aos meus filhos o melhor exemplo possível, na esperança de que cresçam saudáveis, bem educados, e empáticos. acima de tudo, esforço-me para que venham a ser boas pessoas. honestas e verdadeiras.

nestas andanças, desde muito cedo percebi que os “meus” filhos não são verdadeiramente “meus”. são-no na directa proporção da minha carga genética envolvida na sua existência, é certo, mas não são “propriedade” minha. eu não sou dono dos meus filhos nem eles são “coisas” minhas. são seres humanos únicos, individuais e irrepetíveis, com os seus direitos e garantias, autónomos e sobre os quais não posso impor a “minha” vontade.

eu não entendo que “os filhos são meus e eu faço com eles o que quero”, não concebo que “nos meus filhos mando eu e mais ninguém”, nem tampouco acredito que “na educação dos filhos mandam os pais”, como se existissem assuntos do foro educativo dos meus filhos sobre os quais eu detenha exclusividade de educação, como pai.

tal não é o entendimento de um empresário agrícola português, pai de dois jovens, que os proibiu de frequentar a disciplina de cidadania e desenvolvimento, no agrupamento de escolas camilo castelo branco, em famalicão, alegando objecção de consciência. segundo este pai, a disciplina trata de assuntos que são do foro exclusivo da família e o estado não pode usurpar as competências que são exclusivas da família.

resultado: os miúdos chumbaram a uma disciplina que é obrigatória, por dois anos seguidos, viram a sua passagem de ano em final de ciclo ser administrativa até resolução do caso, ficaram no centro de uma disputa de “consciência” entre o seu pai e o estado português, e no final de contas, ficarão para sempre com uma mancha curricular (e social) sem terem responsabilidade directa.

ninguém tem culpa dos pais que tem, é certo. nascemos no seio de uma família e pronto, é a fava que o destino nos fez calhar: para alguns, sorte, para outros, grande azar. mas o azar de um mau começo não dita um destino desgraçado, da mesma forma que a sorte de um bom nascimento não garante, de todo, um futuro radioso. quantas não são as excepções à regra do “sai ao pai”/“filho de peixe sabe nadar” e quantas não são as tristes histórias de quem, apesar de todas as boas condições, acabou por se perder algures?

recentemente, o tribunal de família e menores de vila nova de famalicão decidiu adiar o processo até ao início do ano lectivo que vem (2022-2023), na clara esperança que o pai tome juízo, ganhe alguma noção do mal que está a fazer aos seus filhos, e os deixe frequentar a disciplina, para que, ainda assim, os miúdos vejam certificado um percurso escolar que lhes permita um pleno crescimento e desenvolvimento – como as restantes crianças da sua idade que não tiveram a infelicidade de terem um pai chalupa nem um advogado do chega.

nas alegações que apresentou, o ministério público pediu que os dois jovens ficassem à guarda da escola durante o período escolar do próximo ano lectivo, por se tratar de pessoa idónea e por considerar que os pais “põem em perigo a formação, educação e desenvolvimento dos filhos” ao proibi-los de frequentar a disciplina de cidadania e desenvolvimento.

não só. o ministério público vai mais longe e refere que “há o perigo de maus-tratos psíquicos” aos jovens, por “não receberem os cuidados ou a afeição adequados às suas idades” e por “estarem sujeitos a comportamentos dos pais que afectam gravemente o equilíbrio emocional”.

o ministério público acrescenta ainda que existe perigo de retenção dos alunos, o que tornará o acesso ao ensino superior mais difícil para estes dois jovens. para além disto, também ficará em causa a formação destes jovens no que concerne a matérias como direitos humanos, igualdade de género, sociedade, sexualidade, segurança, defesa, paz, bem-estar animal, entre os outros temas que são tratados nesta disciplina.

o ministério público entende que a atitude dos pais pode configurar “coerção emocional”, para além do péssimo modelo que dão aos filhos, ao agirem como “exemplos fora da lei, que decidem não cumprir, decidindo em causa própria como se juízes fossem” e “actuam como agentes de infracções”.

segundo o ministério público, “os pais parecem ignorar que a criança ou jovem é um ser autónomo, com autonomia jurídica”.

é neste pressuposto fundamental que eu divirjo completamente dos pais destas pobres crianças: eu não ignoro que os meus filhos são eles próprios, para além de mim, com autonomia e vida próprias, sobre as quais eu não tenho direito de propriedade nem de fazer deles aquilo que eu quero. estes pais claramente acham que os filhos são “deles” e que isso lhes dá o direito de os impedir de frequentar uma disciplina obrigatória – sem sequer fazer valer a vontade dos jovens.

achar que a disciplina de cidadania e desenvolvimento merece “especiais preocupação e repúdio” por parte dos pais, especialmente, segundo os próprios, os módulos “educação para a igualdade de género” e “educação para a saúde e sexualidade” e que os restantes módulos são uma “perda de tempo” revela bruta ignorância e preconceito religioso extremista. aos pais, nada menos que uma sentença exemplar, que fulmine de uma vez por toda esta pretensão intelectual estúpida de que “na educação dos filhos mandam os pais”.

não mandam e não podem pensar que mandam. a objecção de consciência não deve ser invocada por dá-cá-aquela-palha, muito menos em questões comezinhas como esta. mesmo discordando do conteúdo dos módulos invocados pelos pais, os jovens devem ter oportunidade de se confrontar com essas realidades dos nossos dias e sobre elas considerar, aprender e – quiçá – discordar. tal como os seus pais têm o direito de discordar. mas se nem frequentam a disciplina, nunca saberão do que se trata, verdadeiramente.

serve de muito pouco cuspir frases feitas sobre ser necessário uma aldeia inteira para educar uma criança, quando, na hora da verdade, se acha que os filhos são “nossos” e de mais ninguém. nada mais errado: os “nossos” filhos serão, mais tarde ou mais cedo, irmãos de todos nós.