Havia dias em que a chuva entrava miúda por um canto da janela. Era a possível companhia, bem-vinda sempre quando um homem está só. Jerónimo era um homem só. Sem visitas, sem partilhas, sem vozes à sua volta. Um silêncio do tamanho da cidade e corredores feitos de quartos escuros e alçapões. Povoava os silêncios com as vozes de outros. Desconhecidas. As que saiam da rádio e da televisão. E banhava-se nelas com a pouca alegria que lhe restava. Desde que ficara só. Com os filhos a vê-los nos festejos anuais. E com os netos a crescerem longe dos olhos. Sem a partilha do seu afecto. Sem a dádiva do seu olhar. Um homem não devia viver o suficiente para que lhe acontecesse isso. Mas vive. É por isso que se esconde às vezes num dos quartos. E fica sozinho à espera que se faça alguma luz na sua vida. A possível. Sem esmorecer. Conta os dias por uma medida estreita desde que ficou só. Absolutamente estanque numa medida rasa. Com os restos de comida de ontem no prato de hoje. Com as sobras da vida a penderem-lhe das olheiras de sempre. Os dias longos de mais, as horas sobrantes sem nada a fazer. Vendo-se ao espelho numa sombra do que foi. O corpo a fugir-lhe sem que nada possa fazer para o contrariar. A vida a fugir-lhe pela ponta dos dedos. Rapidamente. Com desvelo. Aflito um homem pensa que há-de apodrecer sozinho, ver descarnarem-se-lhe os ossos, esfumarem-se os sentidos, corroer-se a última esperança, desaparecer devagarinho. Num fumo ténue. Ver-se ser a sombra do que foi. Jerónimo estica um último olhar pela janela. Há vida nas ruas, carros de um lado para o outro, gente que se move, que tem nomes, que gesticula, que ama, que odeia, que age. Que vive. Jerónimo inveja a vida, detesta a morte mesmo porque a sente devagarinho a aproximar-se, com passinhos de lã, até fazer um grande estrondo.