Infelizmente foi sem surpresa que vi a notícia da cativação de verbas que o Governo Regional se viu obrigado a fazer logo no início deste ano. Uma cativação tão expressiva num orçamento que ainda nem entrou em plena execução mostra as graves dificuldades que as finanças públicas açorianas vão atravessando. Esta é uma situação que ameaça a própria autonomia, pois não pode ser autónomo quem não consegue os recursos necessários para isso.
O nosso povo, muito sabiamente, diz que "quem paga, manda". Essa é uma realidade ineludível, que nenhuma garantia constitucional ou acordo de saneamento financeiro entre governos pode ultrapassar. Na verdade, ser-se autónomo tem como corolário necessário a capacidade de gerar os recursos que sustentem essa autonomia. Iludem-se os que julgam que se pode governar com o dinheiro dos outros. Se queremos competências próprias, temos de as pagar com recursos próprios.
Num excelente contributo para o necessário debate desta questão, que é crucial para o futuro da autonomia como a conhecemos neste último meio século, publicou recentemente o DI um artigo em que lista as transferências diretas do Orçamento do Estado para a administração regional autónoma e para a administração local dos Açores.
São cerca de 400 milhões de euros, a que se juntam as comparticipações à Região Autónoma para os montantes pagos aos operadores pela prestação de serviço público no transporte interilhas, no valor de 10 milhões de euros, e a destinada a assegurar os serviços aéreos regulares, nas rotas não liberalizadas entre o continente e os Açores, e entre este arquipélago e a Madeira, no valor de mais 9 milhões de euros.
Mas esta lista, obviamente, não inclui todas as despesas diretamente suportadas pelo Estado, nomeadamente as referentes a aposentações e prestações sociais cujo valor não seja coberto pelas contribuições dos açorianos, as despesas com as polícias, forças armadas e com o sistema de justiça e prisional, o funcionamento da Universidade dos Açores, o sistema fiscal, na parte não coberta pela retenção de receita fiscal gerada nos Açores, e muitas outras despesas que são direta ou indiretamente suportadas pelo Estado.
E depois há a União Europeia e os seus fundos, com relevo para os ligados à Política Agrícola Comum, que são o único sustentáculo da agropecuária açoriana, o principal pilar da nossa economia. Sem eles, os nossos lavradores já teriam há muito cessado a atividade. Sem os fundos europeus destinados a investimento, o pouco investimento público e privado que se vai fazendo nestas ilhas já teria de todo desaparecido, com o consequente colapso da construção civil, setor que continua a ser um dos pilares da geração de emprego para uma população com baixas qualificações profissionais.
Todas estas transferências acontecem num contexto em que toda a receita fiscal gerada nos Açores é receita da Região, havendo nalguns casos a aplicação de mecanismos de capitação que são claramente favoráveis aos Açores, dada a maior debilidade contributiva da nossa economia. Ou seja, para uma Região que no seu orçamento para 2023 lista 254 milhões de euros de receitas de impostos diretos, dos quais 204 milhões são de IRS, a que acrescem 523 milhões de receitas de impostos indiretos, dos quais 361 milhões são IVA por capitação, as contribuições externas são em valor seguramente superior. Embora haja outras receitas próprias menores, mas ainda assim significativas, que ajudam a reduzir o fosso entre a receita e a despesa, nós já não geramos nem metade dos recursos de que necessitamos para nos autogovernarmos.
Com o limite legal de endividamento excedido, o que obrigou ao endividamento zero involuntário, as soluções são poucas e difíceis. Há mesmo que reduzir a despesa, até porque os fundos comunitários são consignados a fins específicos, não podendo ser usados para pagar despesa corrente, nomeadamente salários. E os adiantamentos feitos têm de ter reposição.
E depois há as empresas públicas e institutos que apesar de morte anunciada e privatização em curso aí continuam a onerar a nossa administração. E mesmo quando extintos ou vendidos, muita da dívida ficará para ser por nós paga. Neste contexto, reduzir impostos e continuar a engordar a administração pública deixou de ser opção.
As gerações, como a minha, que sonharam com uns Açores autónomos, desenvolvidos e livres de peias neocoloniais, não podem deixar de lamentar, e lamentar profundamente, o caminho que isto levou. E, que fique bem claro, não se trata de uma questão partidária, pois há culpas para repartir abundantemente por todos os partidos que alguma vez direta ou indiretamente governaram ou governam estas ilhas. A nossa impreparação e falta de visão, sempre embalados no sonho de que alguém externo pagará, levou a isto. Não atiremos pedras pois vivemos em estufas de vidro.
Este é um debate urgente, pois o tempo das decisões está a esgotar-se. Seria interessante ir revisitar um conjunto de entrevistas a personalidades angrenses feitas no verão de 1937 pelo jornal A Pátria, o antecessor do DI, perante a falência da autonomia distrital de 1928, então consagrada na Junta Geral angrense. Chegamos novamente à mesma encruzilhada, e até mesmo a ameaça de guerra na Europa voltou. Em 1937, a resposta foi o Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes e o estrangular da pouca autonomia que se havia adquirido. Esperemos melhor sorte desta vez. Mas a sorte, dizem, apenas protege os audazes e os resolutos.