Os desvarios de Victor Gaspar trouxeram-me à lembrança a história de um rapaz conhecido como Feijão Furado.
Na escola primária, nada havia de físico ou de intelectual que o distinguisse dos outros, a não ser o ar sisudo e o tique de olhar para o teto ou para o ar, antes de dar qualquer resposta. A grande diferença residia na atitude do professor. Tantos eram os elogios que lhe dava que a turma quase se convenceu que o rapaz era mesmo genial. A qualquer pergunta que lhe era feita, respondia com toda a calma, num tom de voz doutoral, a que hoje chamaria gaspariano. A maior parte das vezes acertava ao lado, mas nem por isso o professor deixava de o incentivar: - Muito bem, continua assim que vais longe.
Farto de tanto salamaleque, um dia o Morcela exclamou:- Feijão furado. Foi o suficiente para, daí em diante, a turma fazer coro sempre que as respostas e as previsões do pupilo metiam água por todo o lado.
Pouco se importou com os uivos dos outros, que não penetravam na redoma que o envolvia. O rapaz vivia fora da realidade. O mundo era apenas aquilo que os seus olhos míopes imaginavam ver; as dúvidas e as críticas, que porventura alguém levantasse, não passavam de manobras delatórias para denegrir a sua imagem; o caminho certo, o bom caminho, era aquele que os sapatos dele palmilhavam, mesmo que fosse pedregoso e sem saída.
Dizem que Feijão Furado foi homem de sucesso, lá por fora, por onde andou emigrado, mas vivia insatisfeito. A sua maior ambição era demonstrar que santos da casa fazem milagres. Por isso voltou à terra natal, onde se apresentou com o canudo de médico naturista, com gabinete e placa dourada na porta.
A partir de então, formaram-se filas de pacientes em busca da cura para as suas maleitas. Uns crentes, outros nem por isso, mas todos aguardaram pacientemente que o tempo revelasse os efeitos positivos da ciência apregoada pelo mestre. As expectativas esboroaram-se quando o anão da freguesia, antigo colega do doutor, resolveu bater-lhe à porta. Achas que ainda tenho hipóteses de crescer? Claro que tens! Sua eminência devorou livros, concebeu gráficos e estatísticas, acabando por elaborar uma receita especial para o anão.
Passados uns meses, nova visita, mas desta vez menos amistosa. Como é que é? Afinal estou a encolher!!! O doutor manteve o fácies indiferente e respondeu: - Isso é passageiro e já estava previsto nos meus cálculos. Brevemente verás os resultados positivos do teu esforço. Não percas a esperança.
Apesar de cumprir a prescrição médica, o anão perdeu a fé e a esperança quando se viu encolhido e a dançar o fandango dentro das calças. Todavia, não perdeu a caridade: encheu meio-alqueire de feijão furado e despejou-o na sala-de-espera do consultório do nosso afamado médico.
Consta que o doutor rosnou entre dentes – Andei a deitar pérolas a porcos – mas não teve outro remédio: fez as malas e abalou.
A freguesia respirou de alívio e todos se tornaram solidários com o anão. Não só conseguiram que ele parasse de minguar como estão em busca de outras soluções que possam concretizar o sonho de ele ver mais além, sem necessitar de andar às cavalitas dos outros.
PS: fui informado que Feijão Furado voltou a ter sucesso no estrangeiro, na companhia de outro cartomante. Assim o comprovou o amigo Relva Curta que disse não só ter “visto e ouvisto” como também confirmava que “ambos os três” haviam formado um quarteto de sucesso.
Que fiquem por lá. Já chega de Feijão Furado.