Opinião

Recadinhos de Amor, versão brasileira

É raro ficar sem palavras. Mas acontece (e deve até haver quem agradeça o facto). Mas nessas infrequentes vezes é normal que um sentimento de incredulidade acompanhe o silêncio. Foi exatamente isso que sucedeu enquanto assisti a partes do longo processo de votação relativo à abertura do processo de destituição de Dilma Rousseff. E ainda nem sei bem como descrever a sensação de surrealismo que me abalou enquanto presenciei deputado após deputado justificar o seu sentido de voto. A forma como todo aquele processo tem decorrido é vergonhosa, um verdadeiro insulto aos princípios democráticos. A votação na Câmara dos Deputados foi, até agora, a cereja em cima desse desastre de bolo. Num ambiente parlamentar caótico, sem rei nem roque, que quiçá faria corar o próprio José Manuel Coelho, uma atrás de outra sucederam-se as justificações para os sentidos de voto dos deputados – numa pressão generalizada, quase sem espaço para respirar, num óbvio desrespeito mútuo pelas posições e livre arbítrio de cada um. Uma vergonha para a classe política, que rivaliza com as periódicas cenas de pugilato do parlamento de Taiwan. As declarações dos deputados fariam concorrência àquelas antigas sessões dos “Recadinhos de Amor a Todo o Vapor”, onde se dedicava música às paixões secretas, aos primos de “RódAiland”, à tia da Feteira, ao cão, ao gato e ao periquito. Na Câmara de Deputados do Brasil invocou-se a nação evangélica, a maçonaria do Brasil, o pai, a mãe, o neto, e até a paz de Jerusalém. Raquel Muniz chamou à baila o marido, que é Prefeito de Montes Claros, como exemplo de gestor público para justificar o seu voto a favor do impeachment, aos pulos – literalmente. Na manhã do dia a seguir o marido era preso por corrupção. Pelo sim, Jair Bolsonaro homenageou o coronel Brilhante Ustra, rosto do regime ditatorial e militar indiciado pela Justiça brasileira pelo crime de tortura. Pelo não, Jean Wyllysreagiu de seguida, invocando os direitos da população LGBT, do povo negro e exterminado das periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem teto, dos sem terra. Foi vaiado, insultado e humilhado – e logo a seguir cuspiu na cara de Bolsonaro. A razão que tinha perdeu-se no cuspo. Segundo muitos outros, até Deus queria que Dilma fosse destituída. Qual crise de refugiados, qual fome em África, quais atentados pelo mundo inteiro – a preocupação de Deus é que Dilma saia do Planalto. A envolvência quase histérica que envolveu toda a votação foi, para além de indigna e circense, manchada por temperamentos e posições irracionais de ambas as partes – numa pantomima extensiva às ruas do Brasil, que parecia estar em ambiente de Mundial de Futebol. Caras pintadas nas ruas, tachos e panelas, vuvuzelas, de tudo um pouco se viu – até ecrãs gigantes em frente ao qual se vibrava com cada voto como se de um penalty se tratasse. Todo este processo deve servir de exemplo a quem exerce o mandato político, para o bem e para o mal. O Brasil, no entanto, quase parece oblívio ao impacto negativo que está a ter a nível internacional. Diminui a confiança económica e financeira, retraem-se os parceiros internacionais e a Economia brasileira continua, enquanto se sopra nas vuvuzelas, a sofrer duros e contínuos golpes. Sofre o povo, ainda que distraído. Não é o fim do mundo. Mas sabe ao fim de alguma coisa. Sabe ao fim da decência e do sentimento democrático. Sabe à perda da vergonha. Sabe a um vale tudo. Não sabe a política vivida com sentido de trabalho pelo próximo. Não sabe à luta pelos direitos do povo. Não sabe à dignidade que deve caracterizar a vida política e que, vezes mais que as que se desejaria, é desatendida por quem não sabe – ou esquece – o objetivo para o qual foi eleito