Uma discussão sobre a classificação etária dos espectáculos tauromáquicos recordou-me que durante a adolescência, por culpa da colecção de DVD’s do Público, Série Y, exposta com toda a dignidade por detrás das portinhas de vidro de uma louceira lá de casa, visualizei conteúdos cinematográficos que, dada a minha idade, seriam, no entender da Comissão de Classificação da IGAC, susceptíveis de provocar-me dano prejudicial no desenvolvimento psíquico e influir negativamente na formação da minha personalidade.
Afortunadamente a louceira escapava à jurisdição da IGAC, que certamente, em nome do meu superior interesse, a fecharia à chave, pelo que a opção de ficar aberta era exclusivamente dos meus pais, o que me permitiu de forma aleatória, num acto de culturismo do bom selvagem, ver sozinho, sem ditames ou orientações e ignorando os M/18 e M/16 das capas, filmes como Intimidade, E a Tua Mãe Também, A Pianista, Morrer em Las Vegas, Miúdos ou Tudo Sobre a Minha Mãe.
Este exemplo de liberdade/responsabilidade educacional, reproduzia em contexto familiar uma regra jurídica (e de bom senso), existente desde 1983, nos regimes da classificação dos espectáculos culturais, que determina que os menores, com mais de 3 anos, podem assistir a qualquer espectáculo, independentemente de classificação etária, desde que acompanhados pelos pais ou por quem por eles se responsabilize, ou seja, a lei prevê uma margem de liberdade/responsabilidade aos pais pela educação cultural dos filhos, onde se incluí também a cultura tauromáquica.
Mas nem sempre foi assim, entre 1971 e 1982 era totalmente proibida a assistência por menores de 6 anos de corridas de touros, só em 1983 é que o Governo de Balsemão, mantendo a classificação para maiores de 6 anos, introduziu a excepção que estabelecia que os maiores de 3 anos podiam assistir acompanhados por um adulto.
A legislação voltou a ser revista em 2014, ainda sem o PAN no Parlamento, pelo Governo do PSD/CDS que aumentou a classificação etária da tauromaquia de 6 para 12 anos, sem alterar a cláusula de salvaguarda que garante a liberdade de educação cultural.
Esta contextualização jurídica surge a propósito da intenção manifestada no Programa do Governo de “elevar a idade mínima para espectáculos tauromáquicos”, que aliada à ideia, aparentemente falaciosa, de que os menores seriam proibidos de assistir a corridas de touros, caiu como uma bomba nesta ilha em que a cultura tauromáquica é um elemento essencial da nossa identidade.
No entanto, parece-nos, que esta medida, a avançar, visa aumentar a classificação etária dos 12 para os 16 anos, exactamente nos mesmos termos da alteração ocorrida em 2014, ou seja, sem afectar a liberdade de educação cultural que garante a entrada dos menores desde que acompanhados por um adulto, que é, sem margem para dúvidas, o elemento essencial a salvaguardar.
Confesso que não sei se com 12 anos alguém vai sozinho a uma corrida ou se aos 15 anos alguém quererá ir acompanhado por um adulto, trata-se de uma questão de fronteira, que talvez ficasse melhor balizada nos 14, do que propriamente nos 16, é totalmente admissível a discussão. Mas neste debate os aficionados não podem deixar-se capturar por uma ideia infantilizante da tauromaquia, que só a debilita.
As corridas de touros são um espectáculo de elevada seriedade, emocionalmente impactante e em que existe permanente risco físico para os envolvidos, são estas as características que lhe dão uma dimensão única de verdade que o diferencia dos outros espectáculos culturais. As corridas de touros não são “como um bailado”(1) ou um conjunto de “momentos de arte e desporto extraordinariamente belos” (2), a tauromaquia tem uma carga dramática e artística intrínseca que sustém a experiência estética e emocional do espectador, pelo que a sua validação por equiparação a outros espectáculos é já o gérmen da sua negação, vejamos: se a tauromaquia retira a sua validade por equiparação ao bailado, e se já existe bailado, então porque é necessária a tauromaquia, se ela é como o bailado.
Porque a corrida de touros é um espectáculo singular a sua essência deve ser mantida, tal como os DVD’s da louceira lá de casa, exposta com toda a dignidade, assistida por menores dentro da margem de liberdade/responsabilidade educacional dos pais, e defendida tendo por base os valores elementares da liberdade, tão frágeis quanto as portinhas de vidro, pois o respeito pela liberdade afere-se pela aceitação de que outros gostem, ou queiram para si, aquilo de que não gostamos, ou não queremos para nós.
(1) https://expresso.pt/politica/2018-03-10-Assuncao-Cristas-Olho-para-a-tourada-como-um-bailado
(2) https://www.cmjornal.pt/opiniao/colunistas/andre-ventura/detalhe/os-touros-da-discordia