O mundo assistiu, com estupefação e incredulidade geral, a uma invasão e tentativa de tomada de assalto (?) do Capitólio, em Washington. O momento do ataque foi propositadamente definido para causar impacto à escala mundial, uma vez que ocorreu enquanto os membros do Congresso estavam reunidos para formalizar a vitória do Presidente eleito, Joe Biden, nas eleições de novembro. Vimos, todos, um passeio triunfal de algumas personagens que pareciam ter saído de um filme de péssima qualidade e, também, muitos "manifestantes" com bandeiras alusivas ao (ainda) presidente Donald Trump. Será tudo isto um retrato da América da era Trump? Ou estamos na presença de uma caricatura? A verdade é que, em qualquer um dos casos, há razões para os democratas de todo mundo sentirem um grande arrepio e muita vergonha. O grande país da história contemporânea da humanidade; o farol da democracia; a terra dos sonhos; o todo poderoso da segurança mundial acaba de recuar até ao século XIX. Mais concretamente ao ano de 1814. Em agosto desse ano, era então presidente dos Estados Unidos da América o "pai fundador" James Madison, milhares de tropas assumiram o controlo das ruas da cidade de Washington, onde enfrentaram pouca ou nenhuma resistência, e marcharam triunfantes em direção ao Capitólio, local onde já estava instalado o Senado e a Câmara dos Representantes. Os invasores, nessa altura, deixaram o edifício em chamas. Foi, como bem recuperou a imprensa escrita nacional, designadamente o JN, “o mais grave incidente até então na História da democracia norte-americana - a jovem república dos EUA tinha nascido apenas há 38 anos, fruto da Guerra da Independência sobre o Reino Unido -, com a "casa da democracia" a arder em destruição física e simbólica.” Acontece que, não obstante a existência de algumas semelhanças, ainda que separadas por mais de duzentos anos, há uma diferença fundamental entre estes dois lamentáveis episódios: a invasão de 1814 foi feita por tropas estrangeiras que obedeciam ao Rei George III de Inglaterra; ao passo que a invasão desta semana foi perpetrada, presumivelmente, por cidadãos norte-americanos fãs incondicionais e “cegos” de Donald Trump. Esta diferença é, para além de extremamente significativa, uma prova inequívoca de um país mais dividido do que nunca. O inimigo está dentro de portas. Os adversários políticos já não são vistos como meros adversários. O fundamentalismo está enraizado em boa parte da sociedade. O ódio está generalizado. O radicalismo está instalado e veio para ficar. Os próximos tempos avizinham-se muito conturbados. A América pós Trump vai demorar, muito tempo, a voltar a padrões de convivência em sociedade tidos por normais. O Presidente eleito, Joe Biden, tem uma missão de elevadíssima complexidade em mãos. Espero que o Partido Republicano, o qual tem no seu património histórico Presidentes como Lincoln, Roosevelt ou Reagan consiga, no mais curto espaço de tempo, virar a página do “trumpismo”. Esse passo será decisivo para a América voltar à realidade que se deseja e deixar a ficção confinada a Hollywood.