a primeira música do álbum undertow, da banda “tool”, lançado em 1993, tem na canção “intolerance” as honras de abertura para a experiência sonora daquele trabalho discográfico. intitulada como o contrário do título deste texto, declara, a determinada altura da canção: “see, i want to believe you/ and i wanted to/ trust you/ (...) but you lie/ cheat and steal!/ and i tolerate you” – num grito desesperado de quem quer acreditar, mas que é continuamente enganado pelas mentiras, trapaças e roubos do interlocutor.
mesmo assim tolera: tenta apaziguar, baixar a guarda, confiar. enfim, acreditar no outro que indefectível continua a enganar: “but you lie/ cheat and steal!/ i cannot tolerate/ our guilt/ our blame/ i’ve been/ far too sympathetic/ i am not innocent/ i am innocent/ you are not innocent/ no one is innocent.” há um momento de ruptura em que o sujeito poético declara “i cannot tolerate” – o que antes tolerava, agora já não.
tolerar é basicamente isto: a constância em sofrer. do latim “tolerantĭa”, remete-nos para o grau de aceitação que se tem em face de um elemento contrário a uma regra – seja ela moral, cultural, cívica, biológica ou física.
a “tolerância farmacológica” refere-se à tolerância que um determinado indivíduo vai adquirindo a um certo fármaco, pela repetida administração do mesmo, resultando numa diminuição gradual do efeito farmacológico no indivíduo, numa quase proporcionalidade directa com o grau de tolerância revelado.
relativamente à sociedade, a “tolerância social” é a capacidade que uma sociedade – um conjunto alargado de indivíduos – tem em deixar que aqueles que lhe são contrários co-existam em relativa harmonia, sem que sejam perseguidos, expulsos ou, pior, aniquilados, porquanto contrários até determinado grau ao grupo que os acolhe.
como rapidamente se percebe, a “tolerância” varia diacrónica e sincronicamente, uma vez que foram tolerados comportamentos sociais no passado que hoje em dia são completamente intoleráveis, e a tolerância pode variar, consoante antecedentes e reincidências, de comunidade para comunidade no mesmo espaço temporal.
basta pensarmos nos enforcamentos públicos ou nos autos de fé, que hoje em dia são intoleráveis, ou comportamentos como fumar na assembleia da república em sessão plenária ou até durante a emissão de telejornais. comportamentos estes que, de tão contrários à norma vigente, se nos afiguram como impensáveis nos nossos dias, e estranhos por vezes apenas ao pensar que já foram tolerados no passado.
a tolerância também tem uma tampa que lhe salta volta e meia. isto é, quando o nível de sofrimento causado pelo agente “estranho” se torna demasiado para suportar, atinge-se o limite, e a tolerância de até então dá lugar à intolerância de ali para a frente. como diz o brasileiro, a tolerância “enche o saco” e explode, rejeitando liminarmente o agente estranho por frontal oposição e choque.
por estas razões, não sou muito adepto da ideia de “tolerância social”, preferindo que trabalhemos no sentido da “aceitação social”, que, ao contrário da tolerância, não se limita sincrónica nem diacronicamente, nem possui níveis que, quando ultrapassados, nos revelem o outro lado de uma palavra que está tão associada a causas justas.
aceitar uma pessoa não é tolerá-la. a primeira implica uma igualdade inerente à condição de se ser humano e partilhar a maravilha da humanidade, ao passo que a segunda pressupõe um desnível entre quem tolera e quem é tolerado, uma vez que este passa a intolerado assim que o “nível/limite” for atingido por alguma razão.
naturalmente, entendo que se deve trabalhar para se incutir nos nossos jovens e nos nossos semelhantes a ideia da necessidade de se “tolerar” mais como “aceitar” do que verdadeiramente tolerar. a “tolerância social” faz sentido se for vista como um passo a dar no caminho final da plena aceitação. isto é, como um meio para se atingir um fim, mas não como um fim em si mesma.
claro está que a tolerância social também pode ser perniciosa. basta deter-nos um pouco sobre a questão dos abusos sexuais de menores no seio da igreja católica por todo o mundo, envolvendo centenas de milhares de crianças abusadas por milhares de supostos “homens de deus”. pois bem, a igreja católica foi, comprovadamente, conivente e tolerante com estas atrocidades, a par de várias sociedades (belgas, francesas, australianas, entre outras) que mostraram elevados níveis de tolerância a estes crimes.
o objectivo final deve ser a aceitação, sendo a tolerância um passo essencial – quando efectivado – para se lá chegar. só assim se conseguirá ultrapassar as barreiras artificiais que nos separam e repetidamente nos enganam com o discurso do “nós” e dos “outros” – como estranhos, estrangeiros, não iguais.
só assim se romperão concepções arcaicas que a ciência, desde o século xviii, tem vindo a desmontar mas que insistem em aventar volta e meia. como o conceito de “raça”. um conceito que, infelizmente, apenas achincalha pessoas e revela uma visão racial e animal – como se a inteligência de que os humanos são dotados não lhes permitissem ver além de traços cada vez mais miscigenados e ténues daquilo que outrora foi a adaptação do ser humano à sua geografia.
a verdade é que o ser humano é mais do que um animal. e tem de deixar de apelar ao recurso aos seus instintos primários como se um regresso à natureza – me, tarzan, you, jane-style – fosse naturalmente uma coisa boa. é que há argumentos que recorrem a uma espécie de determinismo fenotípico como uma certeza absoluta; como se o ser humano já não dispusesse de um cérebro para raciocinar, ou como se já não existissem sociedades globalizadas; ou até, alas, o tempo não nos amadurecesse.
fisicamente, a cor de um objecto resulta da cor da luz que este consegue reflectir. entre um corpo que reflecte toda a luz (objecto branco) e um objecto que absorve toda a luz (objecto negro), existem objectos que reflectem algumas cores e absorvem outras. tomemos uma chávena amarela: na prática, a luz que incide sobre a chávena absorve todas as outras cores excepto o amarelo, que reflecte, incidindo nos nossos olhos e dando a aparência de se tratar de um objecto amarelo. como se a cor fosse parte do objecto. não é.
dito de uma outra forma, um objecto vermelho é, na verdade, tudo menos vermelho; ao passo que um objecto verde é, na verdade, tudo menos verde. dá-se então que um branco é na verdade tudo menos branco, e um preto é tudo menos preto. ou seja, um preto tem mais branco dentro de si do que um branco, e este mais preto dentro de si do que um preto.
e falam-me de cores? de raças?