Opinião

o estranho caso do dr. bolieiro e do sr. josé

o título deste meu pequeno textículo é – como certamente se deu conta o meu paciente leitor – uma singela provocação e um humilde piscar de olhos àquela obra-prima da literatura gótica, escrita por robert louis stevenson, publicada pela primeira vez em 1886 com o título de o estranho caso de dr jekyll e mr hyde ou o médico e o monstro.

uma novela internacionalmente conhecida e de grande alcance, não só pela sua popularidade literária mas também pela versatilidade das suas adaptações, mormente teatrais e cinematográficas, e que é actualmente considerada uma das maiores obras-primas do terror, a par de drácula, de bram stoker, e de frankenstein, de mary shelley.

a história de jekyll e hyde acaba por ser uma “alegoria” – se me permitem a liberdade de utilização do conceito – à condição médica das múltiplas personalidades ou, técnica e modernamente, a “perturbação de identidade dissociativa” que é, de uma forma simples, uma perturbação mental caracterizada por, pelo menos, dois estados de personalidade distintos ou, mais vulgarmente, duas personalidades distintas.

foi precisamente nas duas personalidades da novela de stevenson – uma boa e uma má – em que pensei quando acompanhei a novela da intenção de venda em hasta pública do teatro miramar, por parte do conselho de administração do teatro micaelense, mais tarde desavergonhadamente desmentida pelo presidente do governo dos açores, quando encurralado pelos microfones da comunicação social.

senão vejamos.

o governo dos açores é o accionista principal do teatro micaelense. como tal, não há ordem de trabalhos da sua assembleia geral que não seja do conhecimento prévio, senão mesmo da concordância, do presidente do governo. muito menos quando prevê a alienação de um imóvel público do governo, como é o caso do teatro miramar.

tratando-se de uma vila como rabo de peixe, tantas e tão vãs vezes apregoada como foco de pobreza, na qual a edificação de património cultural e o desenvolvimento de projectos culturais devem ser vistos como estratégias de combate a essa mesma pobreza, uma decisão desta natureza exigia não o conhecimento, mas a concordância prévia do presidente do governo dos açores.

a assembleia geral do teatro micaelense, que está marcada para o próximo dia 27 de março, tem como ponto n.o 5 da sua ordem de trabalhos o seguinte: “autorizar a abertura de procedimento de hasta pública para venda do cine-teatro miramar”. releia-se: venda em hasta pública.

como ainda é ponto da ordem de trabalhos – até uma nova convocatória corrigir esta – mantém-se como intenção do conselho de administração apresentar à assembleia geral do teatro micaelense o pedido de autorização para a abertura do procedimento de hasta pública para que se possa vender o cine-teatro miramar.

não está em cima da mesa qualquer outro cenário que permitisse, fosse esse o caso, a rentabilização de um espaço oneroso para o teatro micaelense e, como tal, para o governo regional. está em cima da mesa a arrecadação de fonte de receita pura e dura. vender. não arrendar, não rentabilizar ou fomentar outras formas de obtenção de rendimento. pura e simplesmente vender; alienar ao desbarato.

aqui entra o sr. josé do título – o mr. hyde. aquela personalidade maléfica que tem conhecimento da intenção, se não for quem teve a ideia, e que permite que a convocatória seja enviada para os restantes associados do teatro micaelense, a ver se o barro pega quando atirado à parede.

mas eis que a comunicação social soube e, ao tornar pública a intenção do governo/teatro micaelense em vender 0 imóvel, provocou uma onda de indignação popular que se materializou na criação de uma petição pública “não queremos que o teatro miramar seja alienado do património da região autónoma dos açores”.

são precisos 300 subscritores para que qualquer petição seja apreciada em plenário da assembleia legislativa regional, e à data da escrita deste registo de memória futura, a petição conta com 1.149 peticionários, nos quais orgulhosamente me incluo.

ora, para lá da petição, a população de rabo de peixe também não achou graça nenhuma à intenção do sr. josé, e o presidente da junta de freguesia – pese embora o triste aproveitamento político que depois tentou capitalizar para si – manifestou-se publicamente contra a intenção do governo, apesar de ser do mesmo partido político.

palavra puxa palavrão, mal-estar provoca incómodo, e o caso lá foi seguindo até ser notícia e reportagem nacionais no jornal público, assunto de artigos em plataformas dedicadas à cultura – como a comunidadeculturaearte.com –, tema de artigos de opinião de actuais e anteriores agentes políticos, e, naturalmente, saco de pancada nas redes sociais.

é aqui que entra em cena o dr. bolieiro. aquele outro, o bonzinho. não o sr. josé, que esse já vimos ser o bad cop, ou o mr hyde desta nossa novela, mas o dr. jekyll, que entre queijos e queijadas da vila na bolsa de turismo de lisboa afirmou:

“não percebo como surgiu a polémica. nunca esteve no plano do governo [regional] aquela alienação. nós somos os accionistas maioritários [do teatro micaelense] e portanto já está determinado que não haverá alienação.”

e acrescentou ser uma polémica “que não existe” e um assunto “que está naturalmente resolvido”.

não percebe como surgiu a polémica? “nunca” esteve no plano do governo? mas o governo manda no teatro micaelense e faz parte dos planos do teatro micaelense, logo, faz parte dos planos do governo! trata-se de uma polémica “que não existe”? ah!, mas existe enquanto na convocatória do teatro micaelense estiver esse ponto e enquanto não for rejeitado em assembleia geral.

uma coisa é ser-se ignorante. outra é tentar passar atestado de ignorância aos outros.

como não gosto que me tomem por ignorante, nem tão pouco considero ignorante quem se acha superior a mim, só posso atribuir estas declarações esquizofrénicas à dupla personalidade de josé bolieiro, umas vezes dr. bolieiro, outras vezes sr. josé; ora bonzinho, ora mauzinho; a ver para que lado sopra o vento e a vontade dos timoneiros.

josé bolieiro não é um. são dois. aliás, são vários, consoante o “transformismo” deste modo de governar. e bem que nos avisou – e ao representante da república –, mas não nos demos conta por- que era o josé que falava quando pensávamos que era o bolieiro que estava a falar.