Catarina Moniz Furtado apresentou esta quinta-feira à Assembleia Legislativa dos Açores, em nome do PS/Açores, o seguinte voto de pesar, aprovado por unanimidade, que se transcreve na íntegra:
VOTO DE PESAR
ANA VIEIRA
Ana Vieira nasceu em Coimbra, em 1940. Por raiz, paterna cresceu na ilha de S. Miguel. Morreu no passado dia 29 de fevereiro, em Lisboa, onde vivia e trabalhava.
Ana Vieira estudou pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Contudo, é ainda durante a sua formação superior que a artista assume uma consciência gradual disruptiva com a pintura, questionando, nas suas primeiras obras, os regimes visuais, nomeadamente a representação, o processo de receção e os pressupostos museológicos.
Concluiu os seus estudos em 1965, altura em que já expunha colectivamente. Em 1968 começa o seu imenso percurso de exposições individuais realizadas em Portugal e no estrangeiro.
Ana Vieira foi influenciada, na sua obra, por Noronha da Costa, Michelangelo Pistoletto e Lourdes de Castro, com quem integra, conjuntamente com Helena Almeida (de quem era muito amiga), um grupo prestigiado e restrito de mulheres artistas que, em Portugal, souberam e sabem realizar uma obra artística sem cedências de qualidade. Numa actividade eticamente exemplar, tal como se reconhece a Ana Vieira.
As memórias, ou vivências – como lhes preferia chamar Ana Vieira – da infância e adolescência passadas em S. Miguel marcariam a sua obra, nomeadamente na exposição Muros de Abrigo, realizada em 2010, ano em que completou 70 anos, no Museu Carlos Machado.
No catálogo da grande retrospectiva antológica, realizada pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2011, também intitulada Muros de Abrigo, percebe-se a ligação de Ana Vieira aos Açores quando ela diz: “ Na casa dos meus pais, que era uma quinta, havia uma zona mais próxima do mar, onde existiam uma série de muros de pedra, muito altos, para protegerem a vinha da maresia. Esses muros tinham portas e chaves, todas diferentes, e para cada passagem das mesmas, levava comigo um molho de chaves. Tinha uma verdadeira obsessão por esse espaço que percorria todos os dias. Era um percurso muito marcante para mim. Implicava um percurso, um ritual, uma cadência com variados tipos de espaços. Terminava com a abertura da porta que dava para o mar ou em alternativa, junto a um poço de maré onde a minha irmã e eu por vezes tomávamos banho…gelado!”
Já nessa memória se destacava aquela que seria uma das grandes constantes do seu trabalho plástico: a dialéctica entre a ocultação e a desocultação de um lugar, preferencialmente de um lugar privado, doméstico.
Outro exemplo das vivências do tempo passado nos Açores é a instalação Pronomes, de 2001, que mostrava o capote-e-capelo do traje feminino tradicional de São Miguel em diversos exemplares. Penduradas do tecto, acopladas com uma instalação sonora que enunciava pronomes pessoais, as peças revelavam uma qualidade dramática que era também, sociologicamente, a única possibilidade para a existência feminina fora do espaço doméstico. É que, quase sistematicamente, a reflexão sobre o lugar da mulher, a sua imagem transmitida pela arte e a solidão a que a sociedade patriarcal a condena são presenças constantes no seu trabalho.
Constelação de Peixes foi outra instalação da artista realizada aqui, na ilha do Faial, na cratera do vulcão dos Capelinhos, em 1995, onde tochas, fabricadas manualmente, foram colocadas de 4 em 4 metros, numa extensão de 400 metros com a forma da Constelação Peixes, de modo a que quem estivesse no topo do vulcão pudesse ver e sentir. Este trabalho foi integrado no International Multi-Media Symposium Azores.
A sua obra foi legitimada, através dos anos, pelas principais instituições e autores portugueses: participou na Alternativa Zero, em 77, organizada por Ernesto de Sousa, que introduziu a contemporaneidade no espaço artístico português. Recebeu o Prémio AICA, o mais importante prémio de carreira em Portugal, em 1991. E, além da retrospectiva na Gulbenkian, realizou uma antológica, em 98-99, em Serralves.
Nos Açores expôs com bastante regularidade, desde 1973, quando se apresenta na galeria Maestro Francisco Lacerda, nas Velas de S. Jorge, e na galeria A Teia, em S. Miguel, até 2015 onde lança individualmente, Inquietação, na galeria Fonseca Macedo.
Está presente em inúmeras colecções privadas e públicas no país e no estrangeiro. A sua obra integra diversas colecções, de que são exemplo a do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa; da Fundação Serralves no Porto; do Museu de Sintra; da Fundação EDP e da Portugal Telecom.
Marca também presença nos Açores em colecções privadas e públicas, nomeadamente aqui na Assembleia Legislativa com uma tapeçaria pensada e produzida propositadamente para este edifício, e no acervo do Governo dos Açores, com a peça Vaso de Flores, 1974.
Assim, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista, ao abrigo das disposições regimentais aplicáveis, propõe à Assembleia Legislativa Região Autónoma dos Açores a aprovação do seguinte Voto de Pesar:
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, reunida em sessão plenária no dia 17 de março de 2016, lamenta a morte de Ana Vieira e endereça voto de pesar à família enlutada.
Do presente Voto de Pesar deve ser dado conhecimento à família, nomeadamente aos filhos, Miguel Nery e Paula Nery, bem como à sua irmã Teresa Albergaria.