De quantos paus se faz a camisa de varas em que estou metido? Um dia um homem pode ser feliz casado há 40 anos com a mesma mulher. No outro senta-se à mesa, tendo por companhia um copo de vinho triste e uma solidão brutal. Num dizem-lhe que procure a mulher possível. No outro procura. Mas há impossíveis. Quantas vezes tenho de te dizer o pesar que sinto por me teres morrido, por agora estar só e descoraçado. Vejo pelas gretas das paredes o bolor a invadir-me a casa num silêncio insidioso. Gela-me a alma. Um lugar sem ti. Desabitado de memórias, negando os anos de felicidade, a alegria dos filhos, os estilhaços das discussões, a passagem dos dias. A terra engoliu-te de repente sem que tivesse tido tempo de me despedir, como se houvesse pressa para o que te estava destinado a seguir. Deixaste-te ir sem dar luta. Muda. Conformada. Como se nada houvesse a fazer. Rasguei todas as ilusões de vez. Bati com a porta da tua igreja. Fechei-me na concha do corpo, acreditando que nada mais há que valha a pena. Os filhos estão sempre longe demais para que os possa alcançar. A casa sucumbe à violência da tua ausência. Os dentes dos dias tragam o que me resta de carne. Como se esta fosse a matéria possível. O terreno provável das horas. Há um restolhar de passos na entrada. Procuro-te pelo postigo. Não estás. Adio a vida. Espero que a volúpia da morte me procure também, mas não sei porque estranha razão sou sempre poupado. Tem-te agora a ti. Regozija-se com a espera. Com o tempo que lhe falta para me vir procurar. Sabe que quando vier pouco restará que lhe sirva. Os ossos seguros pela carne difusa. Os olhos interrogativos. Na beira do precipício em que me chamas, mas em que não consigo, por mais que queira, cair. De antes a vida era difícil, ela soube agora tornar-se impossível.