Na semana passada cavaqueei aqui acerca de algumas acepções da palavra “cavaco” e da capacidade que têm os falantes de uma língua natural de comunicar através de sentidos subliminares às palavras que vêm no dicionário. Por arrastamento (cuja razão, aliás, desconheço…), dei por mim a dar exemplos do que pretendia explicar, com base em certos comportamentos do actual Presidente da República que entrou em pousio para se candidatar ao mesmo cargo. Acho que ficou bem claro que tratei este senhor com o respeito que ele merece, e estou certo de que ninguém alguma vez pensará que fosse minha intenção chamuscar-lhe a honra – apesar de um cavalheiro meu amigo que certamente havia lido o meu escrito, ao ver-me a tentar comprar numa máquina um certo produto que aqui me dispenso de referir, me ter atirado lá da mesinha de canto do café onde ambos nos encontrávamos: “Oh Fulano, então está a escavacar essa máquina?!” – dando assim mais um exemplo para ilustrar o meu esforço filológico; e de um outro igualmente ilustre amigo me ter confidenciado no mesmo dia, à socapa porque estávamos numa cerimónia pública, que o putativo alvo do meu folhetim não me daria certamente cavaco – o que eu sinceramente, e no caso de ter interpretado bem o subentendido da frase, espero que não dê, embora me faça confusão que um candidato a uma eleição se dê ao luxo de não dar cavaco a um cidadão, por mais único que seja, e ainda por cima escrevente. Porque, como diz o Povo nesta sua mania de falar com segundos sentidos, é a grão e grão que a galinha enche o papo…
Depende, é claro, da condição da galinha – pois já alguém me contou que uma vez tinha visto uma que empapava os grãos aos dois e aos três, afastando as colegas à bicada, servindo-se, naturalmente, da sua condição de matrona bem empoleirada no melhor sítio do galinheiro: dentro do comedouro. Mas, nestas coisas como em tudo, cada um que se amanhe como pode – como muito bem sabe um popular que, por ocasião de uma recente arruada de Cavaco, disse à jornalista que lhe perguntava a razão da sua presença ali que “era para ver o Presidente”, e que, perante a observação da repórter de que Cavaco estava ali como candidato e não como Presidente, lhe respondeu desta maneira: “embora sendo candidato, não deixa de ser Presidente”. Servindo-se assim, naturalmente, das prerrogativas protocolares do alto cargo que ocupa para bem-fazer a sua campanha.
Mas mudemos de assunto, que a procissão ainda vai no adro (e cá estamos de novo perante os segundos sentidos das palavras). Apetece-me, antes, contar uma pequena história do quotidiano: aqui há dias fui a uma repartição pública da administração central, para tratar de um assunto pessoal. Por monde das coisas, cheguei já passando cinco minutos das nove da manhã, para que os funcionários não fossem apanhados ainda na fase de despir os casacos e arrumar os papéis em cima das secretárias. Cheguei lá, e ao recepcionista perguntei se podia falar com uma dada funcionária, que era quem estava a par do meu assunto. Ele olhou para o relógio, lentamente, pensou, repensou, e disse-me: “Ela ainda não chegou.” Não me espantei, afinal passava pouco das nove, e perguntei quando é que ela chegaria. “Ah… lá para as nove e dez, o senhor há-de esperar um pedacinho…”. Eu fiquei-me a olhar para o homem, tentando calcular em minutos o pedacinho a que ele se referia. “O senhor vá dar uma voltinha, que ela há-de chegar…”. E perante o meu olhar já meio atónito, ele arrematou-me a conversa: “Tenha paciência!”.
Fiquei sem saber se havia de lhe dar cavaco.