Euclides descia a Rua do Morrão com a alma entre as mãos. Sabia que devia voltar atrás. Ao que tinha ficado por detrás da porta fechada. Mas como se faz rewind numa vida às avessas? Sem o risco de voltarmos ao ponto a que não queremos. Euclides voltou a contar baixinho todos os gumes da sua solidão. Desenterrou da penumbra dos seus medos quatro ou cinco histórias para sobreviver. Sabia neste momento que os passos o afastavam duma inevitabilidade. Estava, apesar de tudo, calmo. Com uma frieza que o espantava. Por detrás dos óculos transpirava devagarinho. A vida tinha-se-lhe precipitado. Estava à frente dele. Sem possibilidade de regresso. Fechou os olhos por um instante para segurar a mão no momento antes de desferir o último golpe. Tentou recolocar-se lá, mas estava no mesmo sítio. Entrou em casa sozinho, raspou os pés ao tapete, resmungou um lamento contra a vida. E fez de si um monstro. Capaz de, à primeira pergunta, despejar a raiva sobre a mulher. A frigideira mais à mão a desferir-lhe um golpe na testa. Ela a cair redonda no chão como num filme já visto. Ele a combater a aflição que lhe tomava o corpo sem remédio. A fugir pela mesma porta, ruminando os lamentos de sempre. Num fio de voz. Agora com o passo mais miúdo a tentar regressar de onde viera. Desfazer os instantes. Descobrir que afinal a mulher se levantou, limpou o sangue e continuou a lavar a louça. Rotinada. Rotineira. Num lamento lento de animal. Tentar repensar a vida como devem fazer os homens. Largando os pés pesados que o arrastavam dali. Que o impediam de ter um resto de dignidade. Por absurda que para ele esta fosse. A engrossarem-lhe os gestos e a entorpecerem-lhe as mãos. Deformando-lhe o corpo imenso. Condenando-o a ficar fechado sobre si. Para sempre. Como fazem os rastejantes quando são confrontados com a mais ínfima adversidade.