Opinião

No ventre

Juvenal desce a rua a passo lento. Arrasta a custo a passagem dos dias num corpo disforme. E imagina se pudesse descascar a fachada das casas como se fosse a pele dum fruto. Como se arrancando as paredes se descobrissem as vísceras destes troncos urbanos. Expondo à luz do dia os seus nódulos mais visíveis, e os seus traumas mais profundos. Ao cimo da rua, numa casa de muitas divisões só uma está ocupada. Enrolada num cobertor pardacento espreita a cabeça de uma velha. Encolhida. Dois passos abaixo uma família numerosa almoça envolta numa algazarra surda de risos e bocas cheias. Logo depois, o silêncio da mesa com pouca comida alimenta os olhos do casal envelhecido que deposita poucas esperanças no resto de vida que lhes resta. Há um médico corrupto que não passa recibos na porta em frente. Logo ao lado da adolescente vigorosa que se espanta com a imensidão do seu futuro. Convencida que há-de fazer dele o que bem entender. E Juvenal apressa o passo, curioso. De tanto os conhecer domina a rua, é uma espécie de tutor dos outros, conhecedor atento das suas rotinas, provedor dos seus desalentos. Apressa o passo, curioso de dominar a vida dos outros, já que não tem mão na sua e acelera pelo outro lado, onde a menina de tranças faz tatuagens escuras em peles demasiado brancas. No restaurante em frente, dois homens devolvem a comida. Não comem o mesmo. Os armazéns estão cheios, sem rotação de stock. Os bolsos desanimados dos que nelas entram saem intactos. Há gente plantada em frente ao espelho incrédula com o que vê. Há homens que vagueiam os olhos pelas linhas de um jornal, absortos do mundo. Juvenal enche o seu dia com o recheio da casa dos outros. Faz da vida deles a sua própria. E cambaleia por ali, à procura de si, à procura dum destino melhor, dum final diferente. Como o dos contos de fadas. Mas as paredes do seu corpo não lhe dão margem para mais. Encerram-no em si. Definitivamente.