I. Além de um arrazoado de estatísticas e indicadores económicos, um país também é (para alguns será mesmo sobretudo) um estado de espírito. O autoconceito dos seus habitantes enquanto comunidade determina, a cada momento, o que julgam ser capazes de realizar, a ideia que fazem do seu esforço coletivo e o que pensam que os outros pensam do seu país.
Desse ponto de vista, Portugal é presentemente um país em depressão, que pode ser por agora apenas reativa mas que ameaça, cada vez com maior probabilidade, tornar-se crónica. Perante episódios recorrentes de má governação, incapacidade das instituições, irresponsabilidade dos vários agentes, esforços inglórios e desilusões em catadupa, os Portugueses desenvolveram um mecanismo coletivo de defesa que mistura culpa, incredulidade e raiva, numa mesma passividade inflamada, que não resolve mas mói.
Para um povo que parece ter uma vocação quase inata para a tertúlia, este estado de coisas é pretexto ideal para o acentuar do lado melancólico sarcástico de todo o Português, quando o que se exigia era um assomo coletivo de energia cívica.
II. Um país neste estado converte-se facilmente em parque de diversões para aqueles que prosperam nos limites mínimos da legalidade e que se vão alimentando da corrosão interna das instituições e da falta de reação das instâncias de controlo.
Portugal passou a ser movido por vagas consecutivas de escândalos político-sociais, que nos vão atordoando o palato cívico ao ponto de perdermos quase por completo a capacidade de distinguir entre o sabor adstringente da aldrabice e o gosto sufocante e intolerável da desonestidade moral e cívica. Metemos tudo no mesmo saco e indignamo-nos por igual. Indignamo-nos por defeito. Estamos sempre indignados e isso, estranha e paradoxalmente, dá-nos um certo conforto e poupa-nos o incómodo trabalho de termos de procurar melhores soluções para o nosso futuro coletivo.
Desenvolvemos essa capacidade muito à custa da Política enquanto bode expiatório. Durante muito tempo, foi a política e o resto, felizmente!,ia funcionando. Os vícios, as irregularidades, as faltas de caráter e os abusos eram, quase todos, obra dessas criaturas grotescas que exerciam cargos políticos. O povo sofria e os políticos alambazavam-se em mordomias ilícitas.
Depois, de mansinho, vieram uns trafulhas da banca menor, mas com isso podíamos nós bem, pelo menos até termos percebido que afinal os bancos de referência também não eram escolas de virtudes. Julgávamos que tínhamos visto tudo com o BCP e eis que veio o BES. Afinal – tivemos de conceder – era a Política e o sistema financeiro, até porque isto anda tudo ligado. Agora surge o dito caso dos Vistos Gold, que nos põe a pensar que se calhar também teremos de juntar ao rol de devassos uma certa elite do funcionalismo público.
Que país é este? – pensam os Portugueses. Que país somos nós? – deviam pensar os Portugueses.
III. O tão subestimado Vergílio Ferreira dizia que “nós não somos um país de consciência comum” e Saramago acrescentava, “não temos um projeto de país”.
Queriam dizer, atrevo-me a interpretar, que o que nos acontece não é só fado, que não há países sem gente dentro e que é dever da boa gente tornar evidente que não há lugar para a gente má.