Opinião

O Parlamento e o que fazemos dele

I. Desde a Grécia Antiga, na alvorada da tradição democrática, que a Assembleia é, em simultâneo, local de publicitação e debate de ideias, e espaço de questionamento e legitimação. Na Ágora das primeiras cidades-Estado gregas aplicavam-se os imperativos democráticos da transparência, do confronto e da justificação do poder perante os cidadãos, na presunção de que da participação plural resultaria um melhor Governo. Contudo, já nessa altura o exercício da crítica ao poder e às suas opções era muito mais pacífico do que o exercício de autocrítica do sistema. Sócrates, o filósofo da maiêutica, da ironia e da dúvida, passou boa parte do seu julgamento a explicar que o seu apelo à auto consciência o tinha tornado impopular, precisamente porque as pessoas resistem a considerarem-se como objetos de análise e a pensar criticamente sobre si próprias. Como se sabe, foi condenado, mas vingou-se por via do peso que detém na construção do pensamento ocidental. II. Pouco ou nada mudou de então para cá e o episódio parlamentar gerado pelo discurso do Secretário Regional da Educação e Cultura, na sessão anual do Parlamento Jovem, é mais uma prova cabal deste estado de coisas permanente da política democrática. “A culpa é necessariamente nossa. A culpa é, por exemplo, de todos aqueles que mensalmente, eu também, se sentam neste hemiciclo e que, não raras vezes, servem a todos vocês o mais triste dos espetáculos, ou seja, o espetáculo da vitória do interesse pessoal sobre a conveniência coletiva, do insulto sobre a decência, da estupidez sobre a inteligência” (os itálicos são meus e são propositados) – foi o que disse, palavra por palavra, o Senhor Secretário Regional. O PSD achou que se estava perante um ato hostil contra o Parlamento, uma desqualificação da Democracia e – ó presunção! – uma “agressão à opção livre dos Açorianos”. A restante oposição, embora em graus e decibéis de indignação diferentes, também. Ninguém, à exceção do PS, se quis lembrar de dois aspetos fundamentais da declaração de Avelino Meneses: em primeiro lugar, que se tratava de um exercício de autocrítica, já que o autor fez questão de se incluir no rol dos visados; depois, que ser democrata pressupõe, como elemento essencial, o reconhecimento do direito à opinião livre e à crítica. Como disse, numa memorável entrevista publicada em livro em 1984, o filósofo francês Michel Foucault, “o pensamento é o que nos permite afastar-nos da nossa ação ou reação, encará-las como objetos e questioná-las sobre o seu sentido, as suas características e os seus objetivos – o pensamento é liberdade.” Foi um homem livre e autocrítico, ator num sistema político assente na liberdade de pensamento e de expressão, que se pronunciou sobre o rumo do sistema, sobre o seu papel e sobre o que há a melhorar. III. O Secretário Regional da Educação e Cultura até podia ter estar errado, porque, em Democracia, qualquer pessoa tem o direito de se enganar, mas, na minha opinião, nem foi esse o caso. Eu, que sou deputado regional, sinto-me por vezes personagem e figurante do quadro pintado pelas declarações do Senhor Secretário. A indignação empolada do PSD pareceu mais uma forma de evitar pensar em si próprio do que uma defesa do parlamentarismo. Um Parlamento que não admita questionar-se arrisca tornar-se um fardo da Democracia e não, como devia ser, o palco privilegiado da discussão construtiva. Não é o Parlamento, como diria o outro, é o que, às vezes (cada vez mais vezes) fazemos dele!