I. Não sei se há votos inúteis mas tenho a certeza de que não há votos inconsequentes. Há quem não se importe - e até ache graça - de exercer o seu direito de voto de forma excêntrica, sem considerar o respetivo efeito prático nas condições de governabilidade do país ou da região. Como forma de protesto, por descrença ou simplesmente porque sim, vota-se de alma ferida e peito aberto, e depois logo se vê.
É muito frequente à Esquerda e é legítimo, mas isso não significa que não existam consequências. Apesar da satisfação pessoal que o eleitor contestatário possa sentir, cada voto na miríade de partidos e coligações à esquerda do Centro-esquerda é menos um voto numa solução de governação à Esquerda e acaba por ser mais um voto cúmplice da maioria de Direita que governa o país há mais de quatro anos.
II. Há uma outra leitura para este tipo de voto. Quem assim vota e os partidos que beneficiam desses votos clamam que se trata de forçar uma solução governativa de Esquerda que inclua outras forças políticas que não apenas o Partido Socialista, fomentando uma espécie de correção das tendências socialistas para ceder ao Centro.
Assim seria se os partidos à esquerda do PS fossem partidos de compromisso governativo, mas não o são e, mais que isso, fazem depender toda a sua ação política do facto de não o serem. Não fazer compromissos, não ceder, não compactuar, são mantras que repetem à exaustão, e, em simultâneo, acusações que dirigem (censurando-o) ao PS. Dizem-se mais de Esquerda do que o Partido Socialista precisamente porque não admitem adaptar os princípios às condições concretas do exercício governativo. E são capazes de repetir obstinadamente a mesma proposta e solução, adequadamente de Esquerda, sexy do ponto de vista da retórica revolucionária, mesmo que isso possa constituir um óbice intransponível a um consenso alargado de Esquerda.
Estes partidos, que se consideram arautos da consciência Socialista e que se colocam num patamar de moralidade revolucionária muito acima da terrena necessidade de governar do PS, têm sido historicamente muito mais úteis à Direita e à sua união federativa contra o PS, do que à Esquerda e a uma hipotética governação purista.
III. Tomemos por exemplo o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda. Apesar das diferenças, são tendencialmente parecidos no facto de dedicarem o mesmo esforço a combater a Direita – do grande capital e do atropelo aos direitos dos trabalhadores – e o PS – que cede ao grande capital e ao atropelo dos direitos dos trabalhadores. Dizendo-se sempre disponíveis para viabilizarem soluções maioritárias de poder à Esquerda, estabelecem sempre, em simultâneo, uma lista de condições para que tal (não) aconteça, em regra inversamente proporcional ao grau de compromisso que o PS estabelece no seu programa eleitoral nas matérias mais caras a esses partidos. Dito de outro modo, quanto mais o PS se revela flexível e aberto às grandes causas da Esquerda não social-democrata, mais exigentes são as reivindicações do PCP e do Bloco para viabilizarem uma eventual solução governativa de Esquerda.
IV. Votar, como assomo de consciência revolucionária ou como protesto, em partidos que, sob pena de diluírem a sua vocação de contrapoder, não podem condescender, é o mesmo que votar na Coligação. Se isso – admito-o – não é inútil, é, pelo menos, contraproducente; se não é ilegítimo, é, pelo menos, incoerente. Porque se é verdade que o PS precisa, por vezes, de regressar às raízes, do ponto de vista programático, não é menos verdade que tanto o PCP como Bloco precisam, quase sempre, de regressar à terra.