Não, não acordei repentinamente, em dia de trabalho, meio assustado e grato pelas notícias da vitória de Trump serem apenas um efémero pesadelo. Aos poucos, após uma noite mal dormida em que resisti ao máximo ao sono à espera dos resultados - que as sondagens à boca das urnas não conseguiram prever - nos Estados americanos do denominado “Rust Belt” (tradicionais bastiões democratas da cintura industrial americana), ainda meio ensonado, vislumbrei as várias notificações de notícias que tinha no telemóvel, que traziam a realidade crua dos resultados que teimosamente ignoramos, apesar de todos os sinais afinal estarem à vista: Trump tinha sido eleito na madrugada de quarta-feira presidente do EUA.
Não, ao contrário agora de muitos, não tinha previsto a vitória de Trump, nem a considerava óbvia. Aliás, se formos mais concretos, esta vitória existiu apenas no bicentenário e arcaico sistema de colégio eleitoral americano que elege o presidente e não em número absoluto de votos. Segundo o New York Times, Clinton terá tido mais 2 milhões de votos e mais 1.5 pontos percentuais do que Trump, o que significa que “terá ganho por uma maior margem, não apenas do que Al Gore, em 2000, mas também R. Nixon, em 1968 e J. Kennedy, em 1960.”
Mas sendo surpreendente o facto de Trump ter conseguido chegar à disputa final, esmagando nas primárias republicanas, já não é inverosímil que, tendo chegado até aí, pudesse ganhar.
A máquina de campanha de Trump foi matematicamente brilhante, trabalhou ao “milímetro” os Estados americanos decisivos para o colégio eleitoral e a retórica demagógica dirigiu-se, meticulosamente, “franja a franja” aos eleitorados descontentes com o sistema político, conseguindo eleger um homem que até há 4 anos era motivo de chacota pelos “média” por causa do seu penteado ridículo e as suas expressões primárias.
Quem assistiu à noite eleitoral, facilmente percebe o efeito Trump: Estado a Estado Trump esmagava na pequena américa rural e desertificada, condado a condado, com margens de 5 mil votos em circunscrições de 6 mil eleitores - esta situação repetiu-se vezes sem conta -, sendo que a disputa eleitoral só voltava a existir quando estávamos nos subúrbios das grandes cidades e a vitória só sorria a Clinton, em regra, nos centros urbanos.
Dir-me-ão os mais entendidos que foi sempre assim a divisão entre os Republicanos e Democratas na América - o que não é inteiramente correto - mas as alterações demográficas e as consequências da globalização atenuaram essas diferenças, sobretudo em prejuízo do partido democrata.
Os americanos brancos (WASP) culpam a globalização, o aquecimento global, os inimigos externos, por mais inverosímeis que sejam, todos os impostos - que os outros não têm! - e, até, os novos seguros de saúde obrigatórios - que roubam, através de descontos, parte generosa do seus precários rendimentos - pelo seu mau destino.
Esses americanos recordam com saudade o tempo da América protecionista, da Ford e da GM e da Coca-Cola, operária, que apenas temia o Japão, mas que ainda dominava o mundo industrial. Agora, maioritariamente, ficou apenas “o Capital” – os Fundos e a Banca – donos das empresas deslocalizadas para a Ásia.
A esses descrentes no sistema democrático e que aceitam tudo menos algo semelhante ao que está, juntaram-se os mais ricos, os que gostam do “sistema” mas apenas o querem mais favorável às classes altas e média alta, ansiosos por menos impostos, pelo fim do “ObamaCare”, e por mais privilégios.
“Esses todos inverosímeis” significaram quase 50% dos votantes americanos, onde Trump triunfou. Os outros, dos que votariam em Clinton, nos quais se inclui a elite dos média e da classe política, que diariamente preferem a acusação de 15 segundos à explicação de 10 minutos, fingiram durante muito tempo que não era consigo e que tudo se ia resolver no fim, no final era tarde de mais.
É esse o mundo em que Trump e outros vão crescer.