I. Uma das questões mais debatidas quando se reflete sobre o distanciamento entre eleitos e eleitores, no contexto do aumento da abstenção nas democracias contemporâneas, é a do valor do compromisso político. Os cidadãos queixam-se de que há um discurso antes da eleição e uma prática, distinta e por vezes até inversa, depois de garantida a vitória eleitoral. Como corolário deste tipo de análise, vigora um discurso generalizado e pouco fundamentado sobre a confiança nos agentes e nas instituições políticas, rematado quase sempre pela célebre máxima “Os políticos são todos iguais”.
Há um simplismo evidente neste tipo de argumentação, até porque a participação política nas sociedades atuais se pode e se deve fazer de muitas outras formas além do voto periódico. Mas também há – e os agentes políticos não podem ignorá-lo – uma lição. O pior que pode acontecer à democracia é tornar-se inconsequente, um sistema em que as opções não têm custos alternativos e a responsabilidade de quem escolhe e a de quem é escolhido se diluem num processo de normalização da ação política que torna tudo mais ou menos igual.
Escolher implica prescindir e assumir a responsabilidade de ter optado num determinado sentido. Apresentar-se ao juízo e à escolha de outros implica comprometer-se e assumir a responsabilidade de agir num determinado sentido. Num caso como noutro, a existência de consequências é determinante para a saúde do sistema democrático.
II. É por isso que votar e eleger Donald Trump para Presidente dos Estados Unidos não é, não pode ser, o mesmo que ter eleito Hillary Clinton. Além de não ser lógico, é perigoso para a vitalidade da democracia eleger alguém que se afirma como antissistema e ficar à espera que o sistema, contra o qual ele se sempre se assumiu, o lime, maquilhe, civilize, para que, então, à piada de o ter eleito não venha a corresponder uma presidência trágico-cómica.
Trump é xenófobo e misógino, ultraliberal a lidar com o mercado financeiro e ultra protecionista a lidar com a economia, imperialista e expansionista. Nunca fez por disfarça-lo e até acentuou ao longo da campanha os traços mais extremos do seu perfil, de modo a reforçar a componente emocional da escolha. Se a democracia ainda não é um hobby ou uma brincadeira, votar num candidato com este perfil tem de ser um ato deliberado e não um impulso. Escolhê-lo é afrontar o consenso do centro do espetro político, é afirmar o desejo de reformulação rápida e com dor do mainstream político americano, é renegar o conforto da normalidade.
A questão – controversa, admito - é, por isso, a de saber se é melhor para o futuro da democracia que Donald Trump, enquanto Presidente, cumpra ou não cumpra o que prometeu enquanto candidato.
III. Tanto do ponto de vista da confiança nos agentes políticos como da responsabilidade de eleitos e eleitores, é perversamente preferível para o futuro da democracia que Trump seja o Presidente que prometeu enquanto candidato. Só desta forma pode o sistema contrariar o discurso público da iniquidade da política. Só por essa via pode a democracia revigorar-se à custa da liberdade consequente da escolha.
O mesmo é válido para quem abdicou de escolher. Temo bem que entre aqueles que agora se manifestam nas ruas contra o resultado estejam muitos que decidiram não decidir, convencidos da existência de um equilíbrio natural do ecossistema político, que evitaria a vitória de Trump sem que eles tivessem de sair do sofá. A resposta foi trágica, mas inevitável. A única forma de o eleitorado americano deixar de querer Trump é Trump poder ser Trump.