Opinião

Não se arranja uma vacinazinha?

Segundo a DGS, à data que escrevo, já foram vacinadas mais de 360 mil pessoas. Os especialistas dizem que o processo de vacinação está a decorrer a bom ritmo. Mas, como sempre, não é essa a notícia. A notícia, dia após dias, tem sido outra.  Infelizmente, temos sido surpreendidos (ou talvez não…) com notícias de abusos, “fura filas”, amiguismos, compadrios e muita falta de vergonha no que respeita ao incumprimento dos critérios de prioridade para efeitos de administração da vacina. As notícias que, diariamente, têm vindo para a praça pública são um retrato cristalino de um país onde o “desenrascanço” e o “chico-espertismo” continua a ser visto com benevolência, um sorriso nos lábios e, por vezes, até com uma pontinha de inveja. É assim desde sempre. Mas não pode ser para sempre! Sob pena de convivermos bem com a corrupção, tráfico de influências, abuso de poder e demais panóplia de crimes tipificados no ordenamento jurídico penal português. Como não quero viver numa sociedade sem regras, valores e princípios, e acreditando que a maioria das pessoas também não queira, julgo estar na hora de se instituir tolerância zero com todos os abusos, maiores ou menores, das regras legitimamente estabelecidas. Não podemos ficar apenas pela repulsa e vergonha alheia que, acredito, não seja apanágio exclusivo da minha parte. No entanto, para enraizamento da tolerância zero, é imprescindível que os representantes do Povo não contribuam para o seu boicote à nascença. Vem isto a propósito da lista inicial de titulares de cargos políticos que se pretendia incluir na fase prioritária da vacinação. Tais titulares, onde se incluíam autarcas, foram enquadrados no mesmo grupo dos bombeiros, das forças de segurança e das pessoas com mais de 50 anos e doenças de risco associadas. Ora, como seria expetável, estávamos na posse de todos os ingredientes para uma dispensável “caldeirada”. Dito e feito. Perante o rol generalizado de críticas, mormente dirigido à Assembleia da República, a lista inicial de 50 (!!!) deputados vai dar lugar à criação de um grupo de trabalho para elaboração de um “plano interno de vacinação” e, consequentemente, à indicação apenas do Presidente e dos Vice-Presidentes para esta fase de vacinação. A necessidade de administrar a vacina a alguns titulares de órgãos de soberania é, para mim, e desde sempre, uma obrigação do próprio regime. Daí que fosse óbvio e compreensível, por todos, que o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República (que legalmente o substitui); os Vice-Presidentes da Assembleia da República; o Primeiro-Ministro; a Ministra da Saúde; os Ministros de Estado; o Secretário de Estado da Saúde e a Diretora Geral da Saúde estivessem logo na primeira prioridade. Mas, por razões que a razão desconhece, decidiu-se que a versão primeira da lista de titulares de cargos políticos a vacinar seria de âmbito alargado. Tratou-se de um erro que não devia ter sido cometido e cujas retificações posteriores já não apagam. Paralelamente, fomos sabendo do autarca que se colocou na lista; da mulher e filha do autarca que também já foram vacinadas; do provedor da santa casa; da família do provedor; da empregada do senhor poderoso; dos padres; dos amigos que foram chamados para as “sobras”; dos vacinados ocasionais; etc… etc…Todos os dias a lista  de casos que nos envergonham vai engrossando. Até ao dia, respondendo ao título desta crónica, que apareça uma vacina contra a indignidade!