A propósito da aprovação e entrada em vigor da Carta Portuguesa dos Direitos Fundamentais na Era Digital assistimos a diversas manifestações de repúdio sobre um suposto regresso da censura dirigida aos órgãos de comunicação social. Sem prejuízo do direito que assiste a cada cidadão de discordar das soluções encontradas pelo legislador, julgo útil um exercício de enquadramento, desde logo porque, tal como determinado na Carta, com esta Lei o Estado assume o cumprimento, em Portugal, do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, protegendo os cidadãos contra ações de pessoas singulares ou coletivas que “produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”.
Comecemos pelo princípio. As Conclusões da reunião do Conselho Europeu de 19 e 20 de março de 2015 continham um ponto muito importante, do qual, certamente, já não lembramos e que salientava “a necessidade de reagir às atuais campanhas de desinformação lançadas pela Rússia” e convidava “a Alta Representante a preparar até junho, em cooperação com os Estados-Membros e as instituições da UE, um plano de ação para uma comunicação estratégica”. O passo que seguiu foi a criação da East StratCom Task Force, dedicada ao combate à desinformação na vizinhança a leste da União Europeia.
Entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018, a União Europeia lançou uma consulta pública com o objetivo de apoiar a avaliação da eficácia da ação dos diversos agentes no combate à desinformação. 85% dos participantes nesta consulta consideraram que a desinformação é um problema no seu país.
Em abril de 2018, a Comissão adotou a Comunicação “Combater a desinformação em linha: uma estratégia europeia”, na qual considera que a desinformação contribui para a diminuição da confiança dos cidadãos nas instituições, na ciência e nos dados empíricos, alimenta tensões sociais, constitui uma ameaça para a segurança interna, incluindo processos eleitorais e pode ser utilizada para “manipular políticas, debates públicos e comportamentos”.
Na mesma Comunicação, a desinformação é definida como “informação comprovadamente falsa ou enganadora que é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que é suscetível de causar um prejuízo público. O prejuízo público abrange ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos…”.
Este mesmo conceito de desinformação está consagrado no código de conduta proposto pela Comissão em setembro de 2018, já subscrito por muitos intervenientes, e na sua proposta de Plano de Ação contra a Desinformação, de dezembro do mesmo ano, no qual se reconhece que as redes sociais e os serviços de mensagem privada são importantes meios de divulgação de conteúdos de desinformação e que as técnicas utilizadas incluem a manipulação ou fabricação de textos e vídeos. Ora, é, também, este conceito de desinformação que está plasmado na Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital, aprovada em votação final global com os votos a favor do PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN e das Deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira e a abstenção do PCP, PEV, CH e IL.
O caso Facebook/Cambridge Analytica mostrou-nos como esta empresa utilizou dados pessoais para influenciar resultados eleitorais. O relatório da Freedom House, de 2019 descreve como a desinformação foi determinante em eleições nos Estados Unidos, no Brasil, no Reino Unido, entre muitos outros países.
Combater a desinformação é garantir aos cidadãos o direito ao exercício de uma cidadania informada e defender a democracia. Um compromisso a reiterar hoje, dia em que celebramos Portugal.