O Presidente da República decidiu aproveitar o discurso na tomada de posse do XXIII Governo Constitucional para, alto e bom som, dizer quais são as regras do jogo. Fê-lo de forma não tão direta como por altura do Orçamento para 2022 e não terá sido por acaso. Marcelo não faz nada por acaso. Marcelo sabe bem o contexto do atual panorama político português.
O PS acabou de ter uma maioria absoluta; a esquerda (radical, ortodoxa e alfacinha) sofreu uma pesada derrota; o centro direita está à procura de um líder e Ventura ainda está inchado. Ora, neste cenário, não fazia qualquer sentido falar diretamente, numa sessão de posse, em eleições antecipadas. Mas Marcelo sabia que aquele era o momento para marcar o ritmo. E se assim pensou, melhor o executou.
A mensagem que saiu da tomada de posse foi cristalina. E ainda bem que assim foi. Este não é o tempo para silêncios e ambiguidades.
Habitualmente, estou em desacordo com a forma de atuação do Presidente da República. Mas desta vez estou em perfeita sintonia.
Sou defensor desta forma de atuação política. Portugal precisa de clareza. O Presidente da República, num Governo com maioria absoluta, tinha o dever de dissipar quais dúvidas. Nos meandros políticos corre, há muito, rumores sobre uma alegada aspiração europeia de António Costa. E a verdade é que daqui a dois anos e meio há um lugar que irá vagar num órgão de topo das instâncias europeias. Refiro-me à presidência do Conselho Europeu. Não é o mais apetecível dos cargos, mas não deixa de ser um cargo relevante. E não havendo outro a vagar...
Por isso, de forma previdente, Marcelo decidiu dizer a todos nós, e a António Costa em particular, o que acontecerá em caso de cedência aos encantos europeus. Marcelo disse e cito, o seguinte: [os portugueses] “deram a maioria absoluta a um partido, mas também a um homem, vossa excelência, senhor primeiro-ministro, um homem que, aliás, fez questão de personalizar o voto, ao falar de duas pessoas para a chefia do Governo. Agora que ganhou, e ganhou por quatro anos e meio, tenho a certeza de que vossa excelência sabe que não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho. Já não era fácil no dia 30 de janeiro, tornou-se ainda mais difícil depois do dia 24 de fevereiro” [início da invasão à Ucrânia]. Este “é o preço das grandes vitórias, inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas. E é sobretudo o respeito da vontade inequivocamente expressa pelos portugueses”, acrescentou Marcelo. A mensagem é, portanto, inequívoca: não haverá um remake do filme protagonizado por Durão Barroso, Santana Lopes e Jorge Sampaio em 2004.
A consequência de uma eventual saída a meio será a devolução da palavra aos eleitores. Marcelo podia ter dito isto desta forma? Podia, mas não seria à Marcelo.