o título desta crónica é retirado da segunda parte da expressão "quem não se sente não é filho de boa gente", cuja primeira parte utilizei para o artigo publicado no dia 26 do corrente, e no qual teci algumas considerações sobre a guerra da ucrânia, portugal, o primeiro ministro, mário machado, a presente crise sísmica de são jorge, a cultura do cancelamento russa, e o rescaldo da novela do ex-director regional da cultura padre.
com um sentido de oportunidade que vai muito para lá de qualquer vontade minha, entre um artigo e o outro, decorreram dois acontecimentos e um esclarecimento, que motivam a continuidade do título deste artigo, assim como a sua publicação com um intervalo de tempo mais reduzido, por razões de oportunidade. tenha o leitor alguma paciência, que não quero açambarcar o seu espaço de leitura mais do que o que devo.
o primeiro acontecimento é a chapada que o actor will smith deu ao colega chris rock, aquando da 94ª edição dos óscares, que decorreu na passada segunda-feira, dia 28 de março, e que foi motivada por uma piada que este comediante fez à esposa daquele, jada pinkett smith, e que tem por pano de fundo uma doença de que sofre -alopecia - e que provoca queda do cabelo.
no seguimento de outras opiniões já aqui escritas e fundamentadas, não há nada de bom na cultura do cancelamento, nem no politicamente correcto, porquanto promovem a ideia de que aquilo que nos ofende ou que nos incomoda pode ser cancelado, retirado do nosso horizonte de vista, varrido para debaixo do tapete do "faz-de-conta-que-não-aconteceu". neste caso, à chapada. é uma ideia que perpetua um sentimento de ódio e de repressão contra o que nos é incómodo, e dá azo à lamentável - e inusitada - situação de um comediante sentir-se legitimado a subir a um palco e bater noutro comediante apenas e somente porque não gostou de algumas palavras.
não se trata se chris rock fez uma piada de mau gosto, ou se não se deve brincar com a doença das pessoas, ou, até, se will smith tem legitimidade de sentir as dores que não são as suas - até porque a piada foi para jada smith e não para will. trata-se, isto sim, de se saber se perante palavras ou ideias de que não gostamos as podemos anular com violência. que é como quem diz: se alguém me ofende, sinto-me legitimado a usar a violência contra essa pessoa? a resposta só poderá ser não.
é errado em toda a sua linha e é preciso ter tolerância zero para com este tipo de comportamentos. venham eles de comediantes famosos, actores, músicos, ou apenas do tipo lá no bar que estava meio bêbado e não gostou de que lhe dissessem que as mulheres não devem tratar da casa sozinhas. a violência não pode ser justificada desta forma, muito menos numa pretensa defensa da honra da esposa de alguém.
no caso do will smith, são tantas as coisas erradas que é difícil saber por onde começar. mas tentemos. chris rock disse: "jada, estou inquieto para te ver no 'g.i. jane 2'" - fazendo alusão a um filme que não existe, uma vez que o único "g.i. jane" foi protagonizado pela demi moore e tem uma mulher de cabelo rapado como protagonista; will smith riu-se da piada, a mulher não - revirou os olhos; will smith viu que ela não gostou da piada e decidiu fazer alguma coisa, naquele estilo do "a proteger a minha dama que é frágil e eu sou macho".
assim, will smith levantou-se do seu lugar, atravessou o palco até perto de chris rock, largou-lhe uma chapada em directo para 16,6 milhões de espectadores em todo o globo. nada de seguranças antes, durante ou depois da chapada. algum silêncio na sala, alguma estupefacção e incredulidade, e o will Smith lá voltou para o seu lugar, endireitando o seu colete.
gritou duas vezes para o palco: "keep my wife's name out of your fucking mouth". aí sim, silêncio completo na sala. chris rock não teve apoio, nada. continuou a apresentação e will Smith manteve-se no seu lugar até voltar ao palco para receber o óscar por melhor actor, arrecadar uma ovação da sala, e seguir a noite como se nada tivesse acontecido. nada? não é bem assim, no seu discurso de aceitação sempre chorou e virou o bico ao prego a falar sobre "amor" e coisas que tal, pedindo desculpas a várias pessoas, mas não a quem agredira momentos antes.
para além da óbvia figura de urso, bronco e troglodita, está por detrás de tudo isto uma conivência tóxica com a ideia de que a violência - em alguns casos - é justificável porque não se pode "dizer certas coisas" nem "brincar com certas coisas". ao invés de se apontar baterias para a incapacidade de will smith em ser um homenzinho e não um arruaceiro de primeira categoria, apontam-se baterias àquilo que foi dito, tentando justificar o injustificável e mudando o ónus da responsabilidade do agressor para o agredido. que é como quem diz: "se levou, é porque alguma coisa há de ter dito" ou "o que é que esperava, vestida daquela maneira"... onde é que eu já ouvi isto antes?
o segundo acontecimento, relacionado com a minha ignorância, foi o artigo carregadinho de veneno de félix rodrigues - assim, em minúscula -, publicado no diário insular de 29 de março, intitulado "a respeito de 'quem não se sente' ou melhor: 'de quem não se toca'" e motivado pela minha sugestão de o vice-presidente do governo regional dos açores ter inventado uma desculpa de saúde para não se deslocar ao brasil. um artigo inteirinho motivado por um parágrafo meu. a honra!
ora, é óbvio que eu não sabia que a "lima azeda" se encontrava doente e se há coisa que eu não quero é gozar de pessoas debilitadas. apresento aqui as minhas mais sinceras desculpas pela sugestão que fiz, e desejo ao senhor vice-presidente do governo regional as mais rápidas e completas melhoras, para que possa voltar às suas plenas faculdades o mais depressa possível. eu entendo que o combate político deve ser feito quando os nossos adversários estão em pé de igualdade e nunca em desigualdade - muito menos por questões de saúde. como tal, as minhas desculpas pela sugestão e os meus desejos de melhoras.
a explicação da minha leitura errada: o senhor vice-presidente do governo regional habituou-me, ao longo dos seus longos anos como líder do cds-pp/açores, a desconfiar das verdadeiras intenções do que é dito por alguns políticos. aliás, foi-me dito pelo próprio, numa ocasião, no aeroporto de lisboa a caminho da terceira, que ele não acreditava nunca nas justificações oficiais porque os governantes diziam uma coisa em público, mas as suas motivações eram sempre outras.
ora, lendo eu no facebook (onde mais?) que, dois dias depois de o presidente do governo regional cancelar a sua visita ao brasil para acompanhar a crise sísmica, o senhor vice-presidente também o havia feito, "alegando" razões de saúde... e não tendo visto nem lido notícias sobre o seu internamento, supus, bem ensinado, que havia outras motivações. afinal não havia outra.
quanto ao artigo do especialista em causa, para além das já habituais falhas de interpretação de evidências - que na arqueologia se cifram em séculos -, pareceu-me que o seu autor está deveras ofendido comigo.
só espero que, quando me vir, não me venha também dar uma chapada, por eu ter brincado com a saúde do seu líder.