o sibilar dos brônquios acorda-a de todas as vezes que a respiração dilata um pouco mais os seus pulmões. deitada sobre o lado, sente-se já cansada daquele respirar arrastado e do frio daquela noite a enregelar-lhe os brônquios, transformando o ar que lhe sai da boca num pequeno bafo de fumo que se desfaz lentamente na imensidão do quarto vazio.
à sua volta, desde que ele partiu para a frente, tudo está escuro e silencioso. as fadas que antigamente por lá passeavam, embaladas ao som das valsas de outrora e encantadas pelos bailes de máscaras da memória, já não aparecem. cansaram-se, à conta de tanta desilusão, de aparecer à sua beira. também elas partiram.
as flores nos vasos do corredor murcharam. cansaram-se da falsa posição de alegria e esmoreceram. deixaram tombar, pétala por pétala, a alegria daquela casa, tornando o papel de parede num esquisso baço e sem vida da resplandecente imagem que outrora foi. já nada subsiste naqueles corredores, excepto a penumbra do silêncio e a escuridão da solidão a que se votaram os elementos à sua volta, desde que ela se deitou e não mais se levantou – por sentirem que já não conseguiam impedir aquela ruína.
a seu lado, sobre a mesa-de-cabeceira de mogno velho, repousa uma chávena de chá frio. o que restou do seu five o’clock tear. um chá de lágrimas que ela não comprou, mas que agora bebe todos os dias desde que ele partiu, sôfrega e resignadamente, entre soluços, tentando encontrar no eco da casa vazia a voz do seu coração.
chama, ao de leve, que vai desaparecendo por entre o fumo do fim. algo chama ao longe por ela. mas ela não quer ouvir, não se quer levantar – o silêncio que a acorda é mais aconchegante do que a vida palpitante lá de fora, que a adormece.
cansada, vira-se sobre o seu corpo, puxando o cabelo por detrás das orelhas, e olha a parede do quarto vazio. olha o silêncio de frente, numa desesperada tentativa de luta, mas resigna-se. e as suas pálpebras, cansadas do peso do tempo, fecham-se devagar.
ao longe pensa ouvir uma valsa, uma ténue e tímida música que a envolve docemente. ao longe, pensa ouvir o ladrar de um cão e o riso de uma criança.
o peso da carne sobre os ossos impede-a de saltar muros e levantar as saias até aos joelhos para jogar à pedrinha ou correr ao apanhar. o poço de descanso secou e já nada a pode fazer levantar da cama. os músculos estão retorcidos, tal cepos de madeira seco e sem vida. custa-lhe abrir os olhos e sorrir, naquela lonjura de quarto que nunca acaba e do tempo que não se vai embora. apetece-lhe dormir, mas o respirar acorda-a constantemente.
pensa ouvir o som de sinos e de renas. pensa ouvir o barulho dos talheres da mesa da sala-de-jantar, numa melodia repetida e ilógica, traduzindo o frenesim da festa, da alegria de dantes.
há um ténue espasmo muscular das suas orelhas ao pensar ouvir o tilintar das chaves nas mãos dele, do outro lado da porta, a prepararem-se para abrir o calor da casa ao frio da neve da rua. e ele, com um amontoado de embrulhos ao colo, sem jeito e cansado, entrar.
não partir, chegar.
as ofertas guardadas na garagem até ao dia especial, até ao fim do jantar, nas suas mãos – mãos de homem, de pai, de marido. e o sorriso, o esgar de alegria pelo mistério dos embrulhos que sabe manter até à hora exacta. o seu corpo agora está adormecido pelo peso do calor e da vontade de ficar.
já não a visitam, já não lhe telefonam a perguntar o que é o jantar nem a que horas devem aparecer. agora, se tanto, recebem telefonemas com o mesmo tipo de perguntas, e ouvem o tilintar das chaves dos seus maridos do outro lado da porta. agora, se tanto, o barulho dos talheres repercute uma música descoordenada nas suas salas-de-jantar. mas não na sua. não na sua.
o som da valsa parece-lhe agora mais perto, mais perceptível aos seus ouvidos. se calhar não é uma valsa, mas um jingle bells que ecoa por toda a sua casa. é isso, um último apelo a que ela levante as saias acima dos seus joelhos e vá descobrir a alegria de andar num trenó de um cavalo só.
que volte a ser criança por um só dia. por uma só noite. que se levante, que sacuda aquele silêncio de cima do seu corpo e que valse, pelos corredores de papel de parede baço, alegrando as flores dos vasos poeirentos, que prepare a mesa da sala-de-jantar para o marido que aí vem. lentamente, a música torna-se cada vez mais perceptível
(jingle bells, jingle bells, jingle all the way) e ela sonha, no silêncio do seu quarto, que consegue ouvir o tilintar das chaves do marido que afinal nunca partiu para a guerra. sonha que ele vem carregado de embrulhos da garagem e que precisa de ajuda para os colocar debaixo da árvore enfeitada. ela sonha. e quando sonha, sorri. sonha que as suas filhas não recebem telefonemas, mas que lhe telefonam a perguntar a que horas é o jantar. sonha que os seus netos têm fome e que ela lhes prepara doçuras.
e ela sonha, sorri e sonha que sai da cama, que corre pelo corredor com papel de parede resplandecente, por pouco quase derrubando os vasos repletos de flores frondosas de alegria, e que abre a porta.
sonha que coloca os presentes debaixo da árvore enfeitada e que, de mãos dadas com o marido, seguem juntos para fora de casa.
ela sorri quando levanta as saias acima dos joelhos e salta para o trenó que os espera
(oh what fun it is to ride/ in a one horse open sleigh) e os leva, juntos, para longe.
para muito longe dali.
para onde o natal é ainda alegria.