no passado dia 19 de janeiro, a plateia do teatro são luiz que assistia à peça "tudo sobre a minha mãe", inspirada no filme de pedro almodóvar, foi surpreendida pelo protesto de uma suposta actriz e performer travesti que subiu ao palco durante o espectáculo para se insurgir contra o facto de uma das personagens transsexuais estar a ser interpretada por um actor cisgénero do sexo masculino.
gritando transfake a plenos pulmões, a travesti atravessou a plateia do teatro completamente nu/a, exigindo que o actor andré patrício saísse do palco porque não era um verdadeiro transsexual e a personagem que estava a representar era, no texto da peça, transsexual. como tal, segundo a travesti, andré não tinha direito de representar aquela personagem.
penso que aquilo que motivou o protesto é, acima de tudo, o motor de toda a polémica, e nada como ler as palavras do protestante para melhor podermos tirar as nossas conclusões. assim, as palavras da suposta actriz foram, ipsis verbis:
"transfake. desce do palco. tenha respeito por esse lugar. respeito! gente, boa noite. eu me chamo *. sou atriz, sou prostituta e trabalho com...(o pano começa a descer)
não, não, não, o que está acontecendo agora é um assassinato, um apagamento da nossa identidade como travesti - por favor, não toquem em mim, eu preciso de três minutos para falar para vocês. se contrataram quatro mulheres, três homens, porquê não contrataram duas pessoas trans para fazer a personagem?
sabe porquê eu trabalho como prostituta? sabe porquê eu 'tou chupando pau como agrado e como lola? porque nós não temos espaço para estar aqui neste palco. nesse lugar sagrado. (...) é por falta de dinheiro? não! todo o mundo aqui pagou. eu faria de graça esse espectáculo.
semana passada eu estava trabalhando como prostituta e um homem apontou um revólver na minha cara e eu ia sendo morta. sabe porque eu ia sendo morta? por causa disso. não estão dando oportunidade para uma travesti trabalhar!
eu queria pedir para as produtoras desta casa, para as produtoras que financiam a produção artística de portugal, sejam nossos aliados. não contratem somente mulheres, homens, contratem travestis pelo menos para subir ao palco 'pra contar nossa própria história. as nossas narrativas. porque isso pode custar as nossas vidas. muito obrigada!"
depois deste triste e confrangedor espectáculo, a direcção do teatro são luiz decidiu substituir o actor cisgénero andré patrício pela actriz trans maria joão vaz e continuar com o espectáculo desta forma, desta feita com dois actores trans no elenco - até então, das duas personagens trans apenas uma era representada por uma actriz transsexual.
entenda cada um o que quiser entender.
eu entendo que a pessoa que interrompeu o espectáculo não representa nenhuma causa senão a dela própriae que quem a ela se junta adere à causa da pessoa e não à de uma comunidade.
entendo cada vez mais que a causa lgbtq+ não é verdadeiramente uma causa, mas um aglomerado disperso de pequenas causas, iguais sob a cor do arco íris e, como ele, fragmentada mas unida na mesma direcção. por enquanto.
sobre esta causa, dave chapelle, num dos seus espectáculos de stand up, descreve essa luta com a metáfora de um carro, conduzid por um homossexual que vai dando boleia a uma lésbica, um bissexual, um trans, etc. é uma delícia inteligente e provocativa, não aconselhada aos estômagos dos ofendidos e decididamente recomendada a quem usa o cérebro para mais do que atirar latas de tomate campbell's aos girassóis de van gogh.
entendo que a argumentação deste protesto é grotesca: só as pessoas trans podem desempenhar papéis transe não fazer isto é ser transfake. a sério? nesta lógica de ideias, só heterossexuais podem desempenhar heterossexuais, só tetraplégicos podem desempenhar papéis tetraplégicos ou só autistas podem desempenhar papéis autistas.
entendo que nesta ordem de ideias os actores e actrizes transexuais não têm lugar em praticamente nenhuma das peça de teatro que a humanidade escreveu até ao século passado.
entendo que o teatro é um espaço de faz de conta, de representação e de liberdade. os transsexuais deviam poder desempenhar qualquer papel - homem ou mulher - para lá da sua natureza trans. insistir nesta argumentação é impedir que transsexuais desempenhem outros papéis que não os da sua natureza. e isso não é inclusivo, é exclusivo e divisionista.
entendo que obrigar a esta quota identitária atenta contra a própria natureza do teatro e ceder a esta acção abre precedentes tão reprováveis quanto o politicamente correcto que grassa nesta sociedade de crianças ofendidas com acesso às redes sociais.
entendo que a direcção do teatro são luiz foi manipulada por essas crianças ofendidas e revelou falta de espinha dorsal ao permitir que uma acção desta natureza tivesse como directa consequência a cedência à vontade de uma histriónica.
para lá da razão social (que dizem defender) da igualdade, esta lógica de ideias cria divisionismo e sentimentos de ódio, ao invés de promover a aproximação das pessoas, independentemente de cisgéneros ou transsexuais.
o discurso de ódio tem de ser repudiado - e ele acontece de ambos os lados. quer-me parecer por vezes que a minoria que se diz "oprimida" é mais lesta a recorrer à violência que os outros lados em conflito.
o ministro da cultura, ao considerar que o próprio protesto era uma "representação" num mundo de "representações", acrescentou ar ao vento. perdeu uma boa oportunidade para estar calado.
o filme tootsie é a história de um homem que se faz passar por uma mulher que acaba por se apaixonar por uma colega de trabalho; o filme victor/victória trata a história de uma mulher que, juntamente com um colega homossexual, se faz passar por um homem e acaba por se apaixonar por um gangster; o filme o ano de todos os perigos tem a personagem de um anão masculino desempenhada pela actriz linda hunt.
qualquer um destes filmes não exisitiria num mundo onde esta argumentação impere.
haja sensibilidade e bom senso.