Opinião

o solilóquio do intitulado

(o intitulado aproxima-se do espelho do quarto de cama, vestido com camisa branca e gravata laranja, de ceroulas beges largas e de meias pretas puxadas até meia perna, sem calças. olha para o espelho e observa a sua figura com o olhar de quem inspecciona o seu carro acabado de sair da oficina depois de uma revisão geral e cujo custo de intervenção ainda desconhece.)

intitulado: meus camaradas e minhas camaradas! (interrompe o discurso como se subitamente se desse conta de um erro) devo usar "camarados" e "camarades" como aquele outro na convenção do bloco de esquerda? (olha para o chão, pensativo) se usar os mesmos termos estou a ser como ele... porra-tonta. mais vale não dizer nada.

quer dizer, mais vale dizer "camaradas" e "camaradas". à antiga. assim percebe-se que estou a falar para os homens e para as mulheres. uma coisa é dizer "camarados" e "camarades", para lá de "camaradas", outra coisa completamente diferente é dizer "camaradas" e "camaradas". as pessoas percebem logo as diferenças.

(olha em frente, para o espelho) já o anterior presidente dizia "açorianos" e "açorianas", como "portugueses" e "portuguesas". teve a vida mais facilitada, esse. não havia tanta identidade mal identificada como hoje em dia. eu já não posso dizer o mesmo, para não parecer que não tenho imaginação. mas também, caramba, dizer apenas "camaradas" é de menos.

preciso de alguma coisa para distinguir. convém distinguir, para não parecer um discurso demasiado impessoal. tenho de chegar às pessoas... minhas camaradas e meus camaradas. ou meus camaradas e minhas camaradas? primeiro os machos ou primeiro as fêmeas? diacho! se for um, é machismo, se for o outro é feminismo. isto de se ser um governo transformista tem muito que se lhe diga e eu pouco ou nada sei dizer sem um guião escrito.

e se avançasse para o "camarades"? assim, sem aviso prévio à navegação? para dar uma ideia de improviso. mostrando a toda a gente que sou um tipo amigo dos advérbios, que não têm género e que não variam em número, que é como quem diz que são palavras mais neutras, mais isentas, quiçá. daquelas que me permitem falar para todos sem que nenhum se sinta ofendido.

também, caramba, que mal há em ser-se ofendido? uma pessoa que acha que pode levar a vida toda sem se sentir ofendida é uma pessoa arrogante, cheia de si, daquelas que acha que o mundo lhes deve tudo e que elas, pelo contrário, não devem nada ao mundo. umas intituladas, é o que são. não suporto gente mal resolvida e intitulada. dizerem que são alguma coisa não é suficiente para serem essa coisa.

é por causa dessa gente e dos seus pronomes que hoje em dia é cada vez mais difícil começar-se um discurso. (endireita a gravata e o torso. assume uma pose mais altiva) adiante! o discurso é que é o importante. não é a saudação. a forma como me vou dirigir às pessoas fica para depois, o que interessa é não perder as pessoas.

venho a este espaço para vos falar da certeza que tenho em não ter certeza alguma. mas que, nos meus quase quarenta anos de presidências, de lideranças e de políticas, me dão alguma certeza em afirmar que não admito lições de moralidade de ninguém senão de nosso senhor que está lá em cima a ver isto tudo.

um homem está aqui para servir os seus conterrâneos e depois é acusado de se servir a si próprio? rejeito toda e qualquer suspeição porque sou um homem sério. (pausa, aproxima-se do espelho para retirar uma remela do olho direito. dá dois passos atrás e assume de novo a pose anterior.) quem não é filho de boa gente não se sente! ou melhor, quem não se sente não é filho de boa gente... assim é que é!

era o que mais me faltava! ser comparado aos sócrates ou aos pinhos do nosso país! aliás, eu não acuso ninguém porque em cada dedo acusatório estão quatro a acusar-nos de volta, e um homem humilde deve saber sempre o seu lugar. e a verdade é que nunca na minha vida alguma vez fui acusado... espera... alguma vez fui constituído... também não... alguma vez alguém da minha confiança... oh pá, também não... (fica em silêncio uns segundos, a olhar-se no espelho).

bom, é melhor começar este discurso de outra forma. ou melhor, se calhar o melhor mesmo é deixar cair esta parte. lembrei-me agora do antónio mexia e do isaltino morais. e da patrícia dantas, essa malandra, que anda a gozar connosco, mais o outro da sindicância. (suspira) sim, é melhor deixar cair o da acusação. se não é pela seriedade, é pela dedicação.

(aclara a voz) camarades! como vos dizia, sou uma pessoa que tem dedicado toda a sua vida à causa pública e serei sempre um defensor dos interesses dos meus conterrâneos. porque sou uma pessoa que não faz carreira da política, não senhor. não sou como esses parasitas que se agarram ao poder que nem carraças, por tempos infindáveis, criando dinastias e feudos, como se não soubessem fazer mais nada que não serem políticos.

camarades! os chamados políticos profissionais... (pausa) como vos dizia, camarades, os políticos que se eternizam no poder e que impedem a alternância são a verdadeira raiz do nosso problema... (pausa mais prolongada) oh, diacho, lembrei-me agora do alberto joão jardim e do albuquerque... como posso falar em alternância quando temos a madeira? (olha para o chão e levanta as pontas dos dedos dos pés) anda um homem a berrar que a mudança é o melhor e depois a constança fica com os louros?

isto terá mesmo de ser com um guião. (suspira, como quem recebe a conta da revisão geral do carro e se apercebe de que é mais cara do que o valor do próprio veículo) que pode um homem fazer? se improvisa, resvala; se lê, constringe-se; se solta a língua, é transformista...

camaradas e camaradas! no fundo, só vos quero dizer que tenham fé. não tenho certezas de nada, mas ninguém as tem, senão nosso senhor - que tudo vê e tudo ouve - e as finanças... aqui para dar um tom humorístico ao discurso... que nem tudo é para ser levado a sério, há que ter uma nisca de piada, caso contrário a política é uma seca ao quadrado.

como dizia, ninguém tem certezas. por isso, tenham fé e acreditem em mim. eu, que sou o garante da estabilidade quando o caos é o meu segundo nome; o garante da confiança, quando a desconfiança mobiliza as minhas hostes; e no fundo, bem lá no fundo, sou a garantia de que não há quaisquer garantias senão o nascimento e a morte. o entretanto é com cada um.

e saibam que sou humilde. sei que no fundo, bem lá no fundo, quem diz ser algo é porque não o é verdadeiramente. e há muita arrogância na afirmação de que sou uma pessoa humilde, eu sei. mas acreditem em mim, camarades, camaradas e camarados, eu sou uma pessoa humilde. se não o fosse, seria como todos os outros que por aqui andam. mas eu não. eu sou diferente. sou intitulado.