Intervenção no debate do programa de governo
do presidente do grupo parlamentar
do Partido Socialista
Carlos César
(9 de Novembro de 2015)
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-ministro e restantes membros do Governo
Senhoras e Senhores Deputados
Uso da palavra começando por cumprimentar todos os deputados que aqui representam a decisão dos eleitores tomada no passado dia 4 de Outubro.
Saúdo, em consequência, o Presidente da Assembleia, segunda figura do Estado, eleita, segundo a previsão constitucional e regimental, por uma maioria dos deputados que legítima e livremente se associou.
O parlamento é a casa-mãe da Democracia. O que no parlamento acontece é consequência da vontade popular livremente expressa pelos portugueses. É essa a regra. É isso, justamente, que esteve presente na eleição do Presidente da Assembleia e que, no decurso e no desfecho deste debate – com os mesmos requisitos de liberdade, de legitimidade e de formalidade –, deverá voltar a estar quando deliberarmos sobre este governo.
Dessa forma “fazemos democracia”. O parlamento é um espaço de representação cívica e não um campo de batalha: é um espaço de convergências e de controvérsia entre as diferentes opções políticas e partidárias, mas marcado pela concidadania; quando os políticos divergem não se devem tornar inimigos, quando vencem não se devem tornar iliberais, quando perdem não se tornam proscritos. Estaremos, pois, aqui empenhados numa cultura de tolerância e de respeito mútuo que temos visto perigar, infelizmente de forma frequente, nos tempos mais recentes.
Todos, os que hoje são governo e amanhã serão oposição, tal como os que farão o percurso inverso, têm a indeclinável obrigação de conviver construtivamente. É o interesse dos portugueses e do Estado que nos deve unir, nas polémicas mais aparatosas como nas mais substanciais.
Sei que todos os que agora aqui estão como membros do governo não o estão por “ambições e interesses pessoais” e nem o PS será governo por outra razão que não seja a de querer outra política, também na esteira do interesse nacional. É bom que nos entendamos sobre isso.
A posição determinante que o PS hoje tem na viabilização ou constituição de um governo não resulta de uma ambição imperfeita mas, pelo contrário, é uma decorrência da nova realidade parlamentar que sugeriu, de forma contrastante com a anterior legislatura, novas possibilidades e novas maiorias. Sendo decisivo haver uma maioria estável em apoio ao governo que seja constituído, com todos falámos e, em função disso, e por causa de todos, decidimos.
O PS não procurou nem deseja ser governo a qualquer custo. O que deseja é que, por um lado, seja aliviado o custo que a economia portuguesa e as pessoas têm suportado com a austeridade excessiva e, por outro, que não recaiam sobre os portugueses os custos de uma solução governativa da direita sem estabilidade e confiança parlamentar possíveis.
As derrotas e as vitórias eleitorais são sempre efémeras, tal como as passagens dos partidos pelos governos. Porém, o que é certo é que, na maioria das vezes, os efeitos decorrentes são prolongados e podem ser penosos. No caso, somámos ao bloqueio detectado em 2011 a desestruturação e as muitas fragilidades agravadas até 2015, e, agora, é tempo de recuperar sem descontrolar e de reformar sem fragilizar. Ou seja, é tempo de mudar tal como achamos que os portugueses eleitores disseram. E essa é a missão escolhida pelo Partido Socialista.
Todos os nossos concidadãos são merecedores do mesmo respeito, tenham eles votado no mais empedernido candidato da direita ou no candidato mais à esquerda, vivam eles no norte ou no sul, na fronteira ibérica ou no litoral, no continente ou nas fronteiras atlânticas das regiões autónomas insulares ou mesmo no estrangeiro. Tal como não devemos separar os portugueses, como se inimigos fossem, também não podemos identificar quaisquer dos que aqui os representam como se de estranhos ao processo democrático se tratassem.
Assentemos, pois, no que realmente se está a passar nesta Assembleia: estamos aqui, legitimamente, e como é nossa obrigação, a cumprir a nossa parte na escolha do melhor Governo para Portugal. Para a aceitação da investidura deste governo não sobressai nem o valor nem o desvalor da tradição, mas tão só o valor da democracia cujo resultado a prosseguir é o da maioria. Só a direita que se dá mal com a democracia não aceita a maioria. E, no que diz respeito ao PS, estamos aqui para vos dizer que a nossa convicção é a de que há melhor política e melhor governo para Portugal do que a política e o governo que o PSD e o PP nos propõem neste acto parlamentar.
Um novo governo. Um caminho diferente. Um caminho que terá de incluir humanismo e precaução social no cumprimento de compromissos como os da trajectória orçamental consonante com as nossas obrigações de Estado membro da União Europeia e da Zona Euro. Por isso, aliás, se ouviu dizer, e com razão, que o PS estudou e debateu, apurada e longamente, todos os aspectos confinantes com esses constrangimentos ao procurar com o BE, o PCP e o PEV acordos para um novo rumo e um novo governo.
O mesmo se pode dizer em relação à generalidade das obrigações bilaterais e multilaterais assumidas por Portugal. Esses compromissos não são dos partidos; são do Estado. E, como tal, e enquanto estiverem em vigor, vinculam-nos, quer concordemos quer não. Assim tem sido, depois do 25 de Abril, desde os governos provisórios até agora.
O PS não recebe lições de europeísmo de ninguém, incluindo de todos os actuais titulares de órgãos de soberania. Mas o governo de Portugal terá de passar a ter uma voz ativa, na Europa, na defesa dos interesses do nosso país, mas também na defesa do projecto europeu, não entendido apenas na óptica de um grande mercado mas como espaço de liberdade, de igualdade, de reciprocidade e de segurança para todos os estados membros e para os seus povos. Divergimos da subserviência e da desistência do governo PSD/PP. E há hoje espaço na Europa para que esse debate se faça e para que Portugal volte a figurar no lado certo da história da construção europeia.
A crise que estamos a viver na Europa, desde a questão dos refugiados, dos valores éticos e culturais, dos nacionalismos, das assimetrias e da segurança e defesa comuns às de gestão do Euro, deve ser aproveitada como uma nova oportunidade de refundação ou, pelo menos, de reabilitação. Importa recuperar os valores mais ínsitos ao ideal europeu que são indissociáveis de um aprofundamento do destino político comum, da melhoria urgente da qualidade da democracia e de uma relação simultaneamente compreensiva, solidária e respeitosa entre todos os seus membros. Tudo isso informa e integra, de forma inalienável, o património político e programático do PS e da sua acção futura.
Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados
Em presença dos resultados eleitorais dissemos que competia à formação política mais votada a criação de condições para formar governo. Dissemos que, em caso de insucesso de tais esforços, procuraríamos, nós próprios, uma solução com apoio maioritário no parlamento e que não deixaríamos Portugal sem governo ou com um governo sem o ser na plenitude dos seus poderes. Partimos, por isso, para o diálogo.
Se houve uma marca no relacionamento interpartidário nestes últimos quatro anos, porém, que dividiu profundamente a opinião dos portugueses, foi a incompatibilidade persistente entre o PS e a coligação de Direita. O essencial dessa confrontação política envolveu orientações estratégicas, medidas de política e procedimentos. Não nos admirámos, por isso, que, quer no decurso da campanha eleitoral quer logo depois das eleições e aqui chegados, ambas as formações políticas tenham encontrado mais razões para se distinguirem do que para se coadjuvarem, e que o próprio líder do PSD tenha anunciado, no passado dia 14 de Outubro, que não reunia mais com o Partido Socialista.
Se o PS tivesse ganho as eleições estaria aqui hoje com um programa de mudança – de mudança da política empreendida nos últimos 4 anos e não de mera continuidade retocada. Se tivesse ganho as eleições com maioria absoluta, poderia não estar a celebrar com a mesma formalidade ou a discutir com a mesma profundidade com o BE ou com o PCP um acordo de políticas, mas estaria, certamente, a procurar governar com um programa e conteúdos muito semelhantes aos que se proporá fazer em consequência dos acordos que acabou por concretizar com esses partidos.
Na verdade, e nos últimos anos, a direita portuguesa reconfigurou-se e radicalizou-se, incluindo nesse movimento o afastamento do PSD das suas raízes e emanações históricas e essenciais. A prova é que procurou o CDS, e não o PS, antes e logo após estas eleições.
Essa direita, tornada minoritária em 4 de Outubro, pretendia agora, à falta da confiança que lhe foi retirada pelos portugueses, rebocar os socialistas, como se de um andarilho se tratasse, para os terrenos da indiferença à pobreza, às desigualdades e às ameaças de insustentabilidade do Estado Social que criou.
Ao invés do percurso feito, o que a situação exige não é o Estado enfraquecido, concessionado e desistente que o PSD e o PP persistem em fazer prevalecer, mas sim um Estado regulador e atento à vida dos cidadãos e das empresas e das relações entre o social e o económico. Nunca compreendi como se pode viver com Estado a mais, mas tenho a certeza que não se pode sobreviver com Estado a menos. E isso separou-nos e separa-nos, de forma muito marcante, da orientação com que a coligação PSD/PP governou e pretende continuar a governar Portugal.
Compreendemos que aqueles que, tomados pela usura de posições dominantes na economia, olhem o Estado como uma presença importuna, mas custa-me entender que os eleitos pelo povo possam governar na perspectiva da promoção da obsolescência do Estado: é como se a política fosse a da sua própria destituição, e como se o político não se considerasse, ele próprio, útil sem se privar da sua própria função. O resultado é a desprotecção das pessoas e o abandono das empresas, sobretudo das milhares de pequenas e médias empresas que povoam e animam a economia por todo o país. Uma vez mais distanciamo-nos da Coligação de direita.
Os anos de governação do PSD/PP foram, dia a dia, durante milhares de dias, um percurso constante de debilitação planeada das funções e serviços públicos. Para isso, nem se preocuparam com uma verdadeira Reforma do Estado: bastou-lhes obstruir, cortar, vender, concessionar funções públicas “a torto e a direito”. E fizeram-no em nome de uma “pulsão social e económica espontânea”, que a direita defende como bastante e como redentora, mas que, quando desacompanhada da acção dos poderes públicos, sempre denunciámos e reiteramos como geradora das maiores desigualdades, da desolação e da pobreza com que nos confrontamos dramaticamente no Portugal de hoje.
O que se sabe, sem dúvidas, e também nos divide, é que o caminho da austeridade excessiva que nos infligiram, sem recuo nem clemência, deixou as empresas e sobretudo as famílias num estado de exaustão e de insuficiência. O que igualmente se sabe é que as desigualdades e a pobreza são incompatíveis com um crescimento económico sadio e duradouro, e muito menos com uma sociedade estável e coesa. Do empresário mais consciencioso ao trabalhador mais humilde temos a certeza que todos desejam mais estabilidade, mais igualdade e mais protecção para as pessoas e para as empresas. E isso, verificámos, não o conseguimos com o PSD e o PP.
Nestes quatro anos Portugal regrediu décadas, particularmente no rendimento das famílias, e perdemos milhares de jovens para a emigração. Não estamos, infelizmente, “à beira do paraíso” que a Coligação procurava indiciar em vésperas de eleições. Agravámos a dívida pública e chegámos a recordes de incumprimento e insolvência de privados. Destruíram-se milhares de empresas, deixando ruas de cidades e vilas de portas entaipadas, casas à venda sem compradores ou à mercê de especuladores, famílias inteiras sem sustento penhoradas sem dó nem piedade e regiões em dificuldades de subsistência. Raramente se ouviu da direita, excepto no auge da propaganda eleitoral, o desconforto a respeito de tudo isso, como se essa fosse a via adequada ou, pelo menos, o preço normal da sua ideia de crescimento e de progresso. Tudo isso nos separa do PSD e do PP. Tudo isso reclama um caminho novo de que nem este programa aveludado se aproxima.
Ainda que o mal tenha avançado muito, é importante alterar caminhos e intensidades, destinatários e objectivos, ressarcir alguns prejudicados, aliviar empobrecidos, diminuir desigualdades, mobilizar empresários.
Tivemos um governo que procurou governar num experimentalismo perturbador e até provocador: umas vezes à margem da lei, desafiando o Tribunal Constitucional, outras furtando-se a uma cultura de diálogo com os partidos, com os parceiros sociais, as regiões, o empresariado e os cidadãos. É necessário devolver à governação o sentido da sua convivência harmoniosa com a ordem legal e constitucional e o seu sentido de partilha com o Portugal Inteiro.
O governo multiplicou os pobres e destruiu as classes médias, debilitou os recursos assistenciais e preventivos, ameaçou os idosos, desprotegeu as crianças, paralisou o investimento público e não privilegiou o privado nos sectores mais importantes para o emprego e o crescimento, relacionou-se com as instituições externas como se nunca tivesse nada para defender no seu próprio país. Divergimos quase sempre na concepção dos serviços públicos de educação, da saúde, da segurança social, da justiça, da organização e das finanças do poder local e, até, dos costumes.
O Governo PSD/PP pode agora, na cosmética do momento político, simular e copiar ideias, frases ou medidas dos outros partidos, trazer roupa nova, pode até vestir-se recorrendo ao guarda-roupa do PS, mas pensa, respira e move-se da mesma maneira. São eles, os mesmos, para fazer mais ou menos o mesmo. E do mesmo, o PS disse em campanha eleitoral que não queria. Do mesmo, voltou a dizer que não quer. Do mesmo, o povo que votou disse da mesma maneira. Do mesmo, já bastou!
Senhor Presidente Senhoras e Senhores Deputados
Não nos desviamos da emergência de novos desafios que reconfiguram os reptos da governação à esquerda.
Sabemos que não há segurança social sem o saldo positivo do desenvolvimento económico; que não há crescimento sem competitividade e empreendedorismo; que não há competitividade sem inovação e diferenciação; que não há sustentabilidade sem o máximo de igualdade; que não há governo nacional sem a consideração de regras e procedimentos comuns a outros âmbitos, incluindo o orçamental e o europeu. Sabemos que os indivíduos, as famílias, as empresas, as comunidades económicas, as expressões culturais não se preservam e se fortalecem sem coabitarem em dimensões mais vastas como aquelas em que nos inserimos, sobretudo nos espaços europeu, transatlântico e da lusofonia.
Sabemos que a moderação em todos os aspectos da vida é um valor. Sabemos que não há escolhas fáceis e sem riscos e que vivemos, à escala global e à escala próxima, momentos de volatilidade e de incertezas de grande potencial reformulador. Sabemos que o reformismo é uma posição inerente à boa governação e que, em democracia, só os bons governos são duradouros. Sabemos que há garantias de uma solução alternativa de governo duradoura na perspectiva da Legislatura.
Temos assim a certeza de que Portugal não só deve como pode mudar de governo.
Disse. Carlos César