Intervenção Presidente Vasco Cordeiro nas comemorações dos 45 anos da Autonomia

PS Açores - 4 de setembro, 2021

Reunimo-nos hoje, aqui, em sessão solene, para celebrar o decurso de 45 anos sobre a data da instalação da 1ª Legislatura da Assembleia Legislativa da Região, então designada Assembleia Regional.

Fazemo-lo na presença de Sua Excelência, o Presidente da República, a quem, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, partido maioritário nesta Câmara, saúdo, salientando a dimensão nacional que a sua presença traz a esta cerimónia.

Se o pretexto que aqui nos reúne é um ato, a ideia que aqui nos convoca vai bem para além desse ato, vai bem para além dos 45 anos que hoje celebramos.

Na abrangência e amplitude dessa ideia, podemos olhar para trás, podemos olhar para o caminho que percorremos, para o percurso que fizemos, para as batalhas que travámos, os sucessos que alcançámos ou as desilusões que enfrentámos.

Mas hoje subo a esta tribuna em nome do Futuro.

Do Futuro que se nos oferece prenhe de oportunidades e de desafios e de combates e de lutas nas quais, o que está e estará sempre em causa, é a forma como esta mesma Autonomia serve o Povo que lhe dá substrato anímico, que lhe dá o sopro de vida.

Não se vislumbre nesta abordagem que vos convido a partilhar qualquer desconsideração, qualquer falta de respeito ou falta de deferência para com o Passado.

A elencagem daquilo que a Autonomia democrática proporcionou ao Povo Açoriano é muito, é muito para caber nesta intervenção, ou mesmo, para caber nesta cerimónia.

Proporcionou-nos, desde logo, a responsabilidade de não cairmos no maniqueísmo de pensar que o único sucesso da autonomia, a única parte em que a Autonomia não falhou, foi a de permitir que nos sentássemos aqui...

Na Saúde, na Educação, na criação de riqueza, no progresso e no bem-estar social, nas infraestruturas e, até mesmo, na própria ideia de Região, na própria ideia de Açores, a Autonomia tem hoje um património riquíssimo para si própria e, não menos importante, um património riquíssimo para o País.

Tenho dito e hoje reafirmo-o: a Autonomia Regional é uma das grandes histórias de sucesso do Portugal democrático.

E assim é, em grande medida – atrevo-me até a dizer, de forma determinante-, porque essa Autonomia que hoje celebramos não é a Autonomia ideal de cada um, mas a Autonomia concreta que é pertença de todos, porque é em todos, na Oposição e no Governo de agora, como na Oposição e no Governo de outrora, que habita a força criadora resultante das propostas, das críticas, dos contributos indispensáveis à sua concretização.

Em suma, se hoje aqui estamos, é porque, antes de nós, já outros aqui estiveram.

Mas, à beira de completar meio século, julgo importante, se não mesmo urgente, fazer incidir a reflexão a que o momento convida, e a ilustre assembleia proporciona, no nosso devir coletivo.

Mais do que uma evidente e urgente necessidade atual e conjuntural, sabermos para onde se vai, e por onde se vai, assume, nos vertiginosos, mas desafiantes, tempos que correm, o caráter de verdadeira condição de sobrevivência.

Para já não falar de outras vertentes ou temáticas, refiro apenas o potencial conjugado que apresenta o efeito conjugado dos recursos disponibilizados pela União Europeia, quer no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, quer no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027.

O montante total que os Açores terão ao seu dispor nos próximos seis anos – mais de três mil milhões de euros!-, é quase o dobro do montante que tivemos à disposição em igual período imediatamente antecedente.

As oportunidades, e também os riscos, estão bem patentes. E, de entre estes, o de desperdiçar aquelas, é, talvez, o maior de todos...

A Assembleia Legislativa da Região tem em curso, desde a Legislatura passada, um aturado e aprofundado trabalho sobre uma componente importante do nosso futuro, a qual, sob a designação de reforma ou de aprofundamento da Autonomia, versa, em grande medida, embora não exclusivamente, sobre questões da sua conformação jurídica ou institucional.

Mas, também na Autonomia, há vida para além desta temática, por muito importante ou determinante que ela seja.

De entre as várias possíveis, salientaria aqui um conjunto de questões que aglomeraria sob uma preocupação transversal de sustentabilidade da Autonomia.

Algumas dessas questões são da nossa exclusiva e inteira responsabilidade. Outras, nem tanto.

A primeira componente dessa preocupação com a sustentabilidade da Autonomia, e que é da inteira responsabilidade açoriana, centra-se, exatamente, na componente financeira.

Desde a instituição da Autonomia Regional que a vertente do relacionamento financeiro entre as regiões autónomas e a República constituiu uma preocupação constante.

A uma fase em que esse relacionamento se processou de forma casuística, em 1998, foi possível, fruto de uma ímpar conjugação de vontade política e empenho autonomista, aprovar a Lei de Finanças das Regiões Autónomas, a qual se assume, indiscutivelmente, como um dos pilares da Autonomia Regional.

O mérito da repartição de poderes e competências que essa lei operou ficou comprovado, não só na estabilidade que passou a nortear um relacionamento que, até aí, era, em grande medida, determinado por humores conjunturais, mas também pela forma responsável e equilibrada como se utilizaram os poderes atribuídos por essa lei.

Em bom rigor, o mérito da Lei de Finanças das Regiões Autónomas ficou demonstrado em variadíssimas circunstâncias, desde logo, na prova de fogo da saúde das finanças públicas regionais açorianas que constituiu o tempo de chumbo da troika em Portugal: a Região Autónoma dos Açores foi a única a estar dispensada de um qualquer programa de ajustamento financeiro.

E é por ser verdadeiramente essencial, por esta ser uma verdadeira condição de todo o demais desenvolvimento e exercício da Autonomia que aqui a trago como preocupação.

E neste contexto afigura-se adequado relembrar aquilo que é essencial:

A Autonomia, ao implicar opções por parte dos órgãos de governo próprio, implica, igualmente, custos que só podem ser por ela suportados.

E se não houver disponibilidade para assumir esses custos, sobretudo em matérias que estão regionalizadas, ou se face aos custos das opções legitimamente tomadas, se enveredar pelo facilitismo de os tentar remeter para outros, isso terá consequências graves quanto ao nosso futuro e ao futuro da nossa Autonomia.

Por muito tentador que seja o canto da sereia de serem outros a pagar o custo das nossas opções, esse é um caminho em que, a médio e longo prazo, já não estará em causa um simples custo, mas a própria ideia, poder e capacidade da Autonomia.

Em nada isso se confunde com questões em que a solidariedade nacional e europeia pode e deve ser ativada, ou porque ainda foram devidamente assumidas, ou porque, face a circunstâncias excecionais, como calamidades, é natural que assim aconteça.

Serve isso para realçar e salientar a essencialidade da saúde e rigorosa gestão das finanças públicas regionais, não só como valor em si mesmo, mas como condição para um exercício livre e cabal da Autonomia Regional, bem como para a sua credibilidade.

Um segundo desafio que julgo dever merecer atenção nesse contexto, prende-se com as questões demográficas, como tal evidenciadas também pelos resultados dos últimos censos, com uma redução de população em todas as ilhas da nossa Região, em linha com o que aconteceu noutras regiões do País, e embora percentualmente bastante menos grave do que é evidenciado na vizinha Região Autónoma da Madeira.

Haverá, certamente, os que optem pela simplificação simplória desses resultados ou por leituras superficialmente partidárias dos mesmos ou das suas razões.

A importância do tema, os seus efeitos, e, sobretudo, a dimensão do desafio que, nesse âmbito, temos à nossa frente recomendam, vivamente, que assim se não proceda.

Após duas severas crises em dez anos, a primeira das quais com consequências devastadoras ao nível do emprego e do bem-estar social, a quebra populacional que já se vinha evidenciando em algumas das nossas ilhas generalizou-se às restantes.

Sabendo nós não há passes de magia que resolvam este assunto de um momento para o outro e, sobretudo, que qualquer solução necessita de tempo para produzir resultados, gostaria de salientar, a este propósito, dois ou três aspetos que, no âmbito da componente Açores do Plano de Recuperação e Resiliência foram, no ano passado, definidos também com o objetivo de contribuir para vencermos esse desafio.

Refiro-me, em concreto, e de forma especial, às componentes da digitalização na Saúde – permitindo mais e melhor acesso e cuidados, independentemente da distância entre o fornecedor do serviço e o doente -, da Educação – reforçando as condições para um salto qualitativo em termos de qualificações digitais, não só dos alunos, mas também do corpo docente -, e da Habitação – com especial atenção às questões da recuperação da habitação degradada e construção de novas habitações para casais jovens.

Acresce ainda, nesse domínio, um conjunto de outras políticas setoriais de cuja conjugação depende, em larga medida, o sucesso.

É o caso dos transportes, do emprego, da competitividade e, até, da política fiscal.

Por último, o terceiro desafio no âmbito da sustentabilidade futura da nossa Autonomia tem a ver com a componente política.

Julgo ser curial considerar que, da parte dos Açores, da parte, desde logo, dos partidos políticos representados nesta Assembleia, há uma ideia clara dos caminhos pelos quais, nessa componente, se deve avançar.

Mas, mesmo sabendo que a Autonomia foi, e é, um processo de conquista, de reivindicação e de luta permanente, talvez não seja despropositado, passado quase meio século, perguntar:

E o País?

Há, exatamente, 20 anos atrás, aqui, nesta mesma sala, em cerimónia semelhante, o Presidente da República, Jorge Sampaio, afirmava, e cito: “a autonomia é um património colectivo de todos os portugueses, da Democracia e da República, que como tal deve ser valorizado.” Fim de citação.

E, por isso, este parece ser um momento tão bom quanto outro qualquer para perguntar:

O que pensa, o que propõe, que caminhos vislumbra, proactivamente, a República para o desenvolvimento da Autonomia Político-Administrativa?

A pergunta não é, nem pretende ser, uma provocação.

A pergunta parte, muito simplesmente, do quadro de objetivos que, desde 1976, e, salvo erro, sem qualquer alteração posterior, foi fixado na Constituição da República para a Autonomia político-administrativa: a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social, a promoção e defesa dos interesses regionais, o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.

Dito de outra forma, perante este quadro de objetivos que, na sua maioria, são objetivos gerais do Estado e, portanto, incluem também as regiões, qual a abordagem que tem a República para o desenvolvimento das autonomias regionais?

É claro que podemos refugiarmo-nos na perspetiva que o País seguirá, ou pronunciar-se-á, sobre aquilo que as regiões propuserem.

Mas talvez isso seja pouco.

Talvez isso seja constrangedoramente pouco, como é constrangedoramente pouco quando, consciente ou inconscientemente, se reduz a questão a simples declarações de circunstância.

E é sobretudo pouco quando, lenta, mas progressivamente, ao longo destes 45 anos, temos vindo a assistir a não poucas nem disfarçadas tentativas de esquecer, e de fazer esquecer, a componente política da nossa Autonomia, procurando limitá-la, apenas e tão só, à componente administrativa.

E isso acontece, desde logo, em novas áreas de intervenção e de interesse estratégico, como aconteceu, por exemplo, quer com a aprovação inicial da Lei de Bases de Ordenamento e Exploração do Espaço Marítimo, a chamada Lei do Mar, em 2014, quer com as reações que, de vários quadrantes, surgiram em relação à sua primeira alteração, em 2021, a qual, neste momento, aguarda a pronúncia do Tribunal Constitucional, após um pedido de fiscalização sucessiva apresentado por deputados de vários partidos representados na Assembleia da República.

A isto acresce, por exemplo, a verdadeira obsessão com um aspeto que se reconhece central em todo este debate, mas que, mesmo que se considere que ele se justificou, por conveniência ou receios, em 1976, hoje, a evolução de 45 anos, a realidade pura e simples da dinâmica do exercício da autonomia, demonstram que está ultrapassado.

Falo-vos dessa cláusula geral e abstrata do caráter unitário do Estado, a qual, cada vez mais, parece servir de derradeiro e desesperado pretenso argumento contra qualquer pretensão das regiões, quando tudo o mais, incluindo a razão, a lógica e o mérito, lhes são favoráveis e militam a favor da sua aceitação.

A história destes 45 anos, mas, sobretudo, a realidade que hoje é tão rica e tão diferente de 1976, não permitem, com razoabilidade, que essa trincheira unitária se mantenha por muito mais tempo.

Para esse efeito, mas sobretudo para a análise dessa dinâmica, e tendo em conta o que aqui está em causa, terá, porventura, utilidade recordar - e a nossa história destes 45 anos bem o demonstra!-, que também a Autonomia obedece à terceira lei de Newton...

Mas a razão pela qual julgamos também ter interesse a interpelação da República quanto ao que pensa sobre o desenvolvimento da Autonomia, radica também na circunstância de, salvo melhor opinião, o nosso País, de uma posição de vanguarda no que respeita a este tipo de descentralização, ter perdido terreno face a outros países que, embora mais tarde, também optaram por seguir o caminho de descentralização política nos seus territórios.

É o caso da Espanha. Mas é também o caso da Itália.

Atrever-me-ia até a pensar, Senhor Presidente da República, que poderia Vossa Excelência, não só como mais alto Magistrado da Nação, mas, também, como antigo deputado constituinte e autonomista confesso, dar este novo impulso no País à causa da pedagogia das autonomias regionais.

Concluo esta intervenção com uma referência aos Pais da Autonomia: As mulheres e os homens Açorianos

Sem eles, não teria havido Autonomia.

Sem eles, não haverá Autonomia.

E, por isso, nesta referência ao autêntico alfa e ómega desta aventura da Autonomia, sonhada desde há muito, e concretizada há bastante menos, resta o desejo de que todos nós, dentro e fora, desta sala, sejamos capazes de manter viva a chama do “orgulho intenso na palavra Açor”.

A isso nos impele o Sonho!

A isso nos obriga a História!

Disse.

                                              Horta, Sala das Sessões 4 de setembro de 2021