Na sequência de reiteradas e insistentes questões colocadas pelo Partido Socialista/Açores, o Senhor Presidente do Governo, veio, finalmente, ontem, tentar explicar e justificar a posição do atual Governo Regional face à questão do montante de verbas garantidas pela República para fazer face à recuperação do furacão Lorenzo.
É caso para dizer que foi pior a emenda do que o soneto.
Estou, aliás, convencido que o Senhor Presidente do Governo não pretendia revelar tudo o que, involuntariamente, acabou por revelar nesse esclarecimento.
Em primeiro lugar, revelou um Governo que, quando é apanhado em falso, como é o caso, porta-se como um garoto.
Ao invés de assumir corajosamente as suas responsabilidades, os seus erros e as suas omissões, prefere refugiar-se nas meias-verdades, na referência propositadamente incompleta e truncada a documentos ou a factos.
Prova do que agora afirmo é que, no seu suposto esclarecimento, o Senhor Presidente do Governo omite, propositada e conscientemente, que a carta a que faz referência, e que, a 26 de agosto de 2020, foi enviada pelo Senhor Ministro do Planeamento ao então Vice-Presidente do Governo é uma carta sobre a “preparação dos instrumentos de planeamento 2021-2027”, e não sobre as verbas globais a afetar aos Açores por causa do furacão Lorenzo.
Omite, propositada e conscientemente, que a carta, como dela resulta claramente, não tem por objeto definir qual o montante de verbas a transferir por causa do furacão Lorenzo, mas sim, sistematizar os princípios a seguir no âmbito da programação dos fundos europeus para o próximo período de programação.
Omite, portanto, que essa carta não define, nem nunca pretendeu definir, o montante global de verbas a transferir por causa do furacão Lorenzo, mas define, isso sim, a parte, e apenas a parte, que, no âmbito dos próximos fundos comunitários a partir de 2021, serão afetos à recuperação dos estragos do furacão Lorenzo. O restante vem, como já veio, em parte, do Orçamento de Estado e do Fundo de Solidariedade da União Europeia.
Mas o suposto esclarecimento revela um Governo que também omite que existem mais documentos sobre esta matéria que não apenas a carta em causa: existe, desde logo, uma Resolução do Conselho de Ministros, a n.º 180/2019, de 8 de novembro, publicada em Diário da República, a qual estabelece que os apoios financeiros necessários ao restabelecimento da normalidade por causa do Lorenzo são suportados em 85% pelo Governo da República.
E omite, também, que o valor sobre o qual esses 85% se aplicam também já estava aferido, desde logo, pelo Relatório do Grupo de Trabalho da Assembleia Legislativa Regional, concluído em setembro de 2020. E o resultado dessa operação não dá, nem nunca podia dar 198 milhões de euros.
É por isso que o suposto esclarecimento do Senhor Presidente do Governo revela, em segundo lugar, um Governo profundamente incompetente.
Prova do que afirmou é que, em 11 de meses deste Governo, com tantos assessores e membros do Governo, ninguém se deu ao trabalho de ler ou de mandar ler do princípio ao fim, e com “olhos de ver,” a carta do Senhor Ministro do Planeamento ao então Vice-Presidente do Governo?
Em 11 meses, com tantos assessores e membros do Governo, ninguém percebeu que essa carta não se referia às verbas para a recuperação do furacão Lorenzo, mas sim à preparação dos instrumentos de planeamento 2021-2027, nos quais está incluída apenas uma parte do valor para o Lorenzo?
Em 11 meses, ninguém se deu ao trabalho de fazer as contas? De aplicar 85% - valor definido na Resolução do Conselho de Ministros n.º 180/2019 - sobre o montante que, desde logo, a Assembleia Legislativa, no Relatório do Grupo de Trabalho, aferiu como o total de prejuízos para, pelo menos, perceber que os 198 milhões de euros nunca poderiam ser o valor global de solidariedade da República? Que essa ideia peregrina de querer ver, à viva força, um limite nos 198 milhões de euros não batia certo com as outras contas de aplicar os 85% sobre o montante total de prejuízos?
Pelos vistos, acharam muito mais fácil atribuir falsas culpas ao anterior Governo Regional.
É por isso que esse pretenso esclarecimento revela um Governo profundamente incompetente.
Mas o que é verdadeiramente espantoso é que o alegado esclarecimento revela que, afinal, quem propôs ao Primeiro-Ministro a fixação de um limite máximo da solidariedade nacional para a recuperação dos estragos do furacão Lorenzo, no valor máximo de 198 Milhões de euros, foi, nem mais, nem menos, que o próprio, e atual, Presidente do Governo!
Repito, a primeira vez que alguém sugere ao Primeiro-Ministro que seja fixado um limite máximo de 198 milhões de euros para a ajuda nacional à recuperação dos estragos do furacão Lorenzo, é o próprio, e atual, Presidente do Governo na carta que diz ter enviado a 17 de junho.
E esse facto é de tal forma escandaloso que não pode ficar apenas por uma referência velada na comunicação do Senhor Presidente do Governo.
A partir da comunicação de ontem, é uma exigência, em nome da verdade e da transparência, que o Senhor Presidente do Governo torne pública, na íntegra, a carta e anexos que remeteu ao Senhor Primeiro-Ministro a 17 de junho sobre este assunto.
Por isso, o pretenso esclarecimento revela, em terceiro lugar, um Governo que, mesmo que tivesse uma dúvida, - optou pelo caminho mais prejudicial aos Açores e aos Açorianos.
Prova do que afirmo é colocarmos a hipótese, apenas como hipótese, que o atual Governo tinha uma dúvida sobre se os 198 milhões seriam ou não o limite global da solidariedade.
O que é que era natural um Governo Regional fazer?
Esclarecer, perguntar, questionar, mas nunca, nunca, quando em dúvida, seguir o caminho que fosse mais prejudicial aos Açores.
Seja porque viu nisso uma oportunidade de voltar a atribuir culpas ao anterior Governo, seja porque achou que poderia capitalizar politicamente o eventual descontentamento face ao Governo da República, o facto é simples e ergue-se em toda a sua crueza: mesmo que tenha tido uma dúvida, o atual Governo regional enveredou pela solução mais prejudicial aos Açores e aos Açorianos.
Em quarto lugar, este presumido esclarecimento, revela um Governo Regional que resvala, com ligeireza e demasiada facilidade, para a farsa política.
Prova do que afirmo é que quando, em 15 de setembro, o Senhor Presidente do Governo foi confrontado pela comunicação social com o teor do despacho do Senhor Primeiro-Ministro a sua reação foi do seguinte teor, no telejornal desse dia, da RTP/Açores:
“Havia um compromisso e uma expetativa. Um compromisso do Governo da República, uma expetativa da Região Autónoma dos Açores e nós vamos, obviamente, perante esta situação em concreto manter o diálogo com o Governo da República para que se possa dar o dito pelo dito, e não o dito pelo não dito, em matéria de compromissos e de expetativas.”
As notícias que foram publicadas a esse propósito dão todas conta que o Senhor Presidente do Governo foi apanhado de surpresa pelo limite dos 198 milhões. Ninguém do Governo contestou, desmentiu ou esclareceu esse entendimento que resultava das declarações do Senhor Presidente do Governo.
Ontem, ficamos a saber, como disse atrás, quer por uma referência velada e meia envergonhada do próprio pretenso esclarecimento, quer pelo Telejornal da RTP/Açores que, afinal, quem propôs o limite de 198 milhões de euros foi o próprio Senhor Presidente do Governo, na carta enviada por si a 17 de junho deste ano ao Senhor Primeiro-Ministro.
Das três, uma:
Ou o Senhor Presidente do Governo assinou de cruz o que lhe puseram à frente e não sabia o que assinou;
Ou o Senhor Presidente do Governo fingiu surpresa quando, afinal, sabia que tinha sido ele a propor o limite de 198 milhões de euros para o furacão Lorenzo;
Ou o Senhor Presidente do Governo foi enganado.
Qualquer uma das hipóteses é má demais para ficar por isso mesmo.
Mas há uma coisa que não aconteceu: Ao contrário do que ontem quis fazer crer aos Açorianos, o Senhor Presidente do Governo não disse que já sabia dos 198M€, não disse que tinha sido ele a propor esse limite e que estava surpreso com outros aspetos da carta. Fingiu uma coisa diferente. Fingiu que o Governo da República estava a fugir aos compromissos assumidos com os Açores.
Este comportamento tem o nome de farsa.
Em qualquer circunstância, é mau e é feio. Quando envolve o relacionamento entre instituições como o Governo Regional e o Governo da República, coloca em causa as imprescindíveis lealdade e confiança institucionais e prejudica a Região.
Em quinto lugar, a tentativa de esclarecimento de ontem, por tudo aquilo que até aqui referi, revela um Governo que se julga impune para enganar os Açorianos, que acha que pode ir mudando as suas versões dos acontecimentos à medida que vai sendo apanhado em falso, que acha que pode omitir total ou parcialmente os factos que aconteceram para criar a versão que mais lhe convém em cada momento.
Isso é mau para o Governo, mas é ainda pior para os Açores e para os Açorianos.
Com menos de um ano de existência, este Governo Regional já esqueceu que até pode enganar todos durante algum tempo, até pode enganar alguns durante todo o tempo, mas não consegue enganar todos durante todo o tempo.
Horta, 21 de setembro de 2021
O Presidente do PS/Açores
Vasco Cordeiro