A manifestação convocada pela ANAFRE foi, sem dúvida, uma das maiores e mais populares da nossa era democrática. E os Açores também estiveram presentes, com alguns autarcas a agitarem o estandarte das suas freguesias, juntando-se a essa onda de protesto contra a prepotência de Passos/Portas/Relvas e Cª.
Entre o Marquês de Pombal e o Rossio desfilou o país, por inteiro, com as suas mais genuínas tradições. Uma imponente manifestação etnográfica, com destaque para o folclore, os trajos típicos, em que sobressaíam a riqueza e a beleza dos minhotos, o aprumo das filarmónicas, as vozes afinadas dos alentejanos e muitos grupos musicais com os bombos a zurzir no bombo da festa: o ministro Relvas, considerado o “Coveiro das Freguesias”.
Muitos dos manifestantes, de todas as idades, terão pisado pela primeira vez na vida a Avenida, mas fizeram-no com convicção, empunhando cartazes que expressavam o que lhes ia na alma. O sentimento de perda e de destruição da memória e da história de um povo foi, provavelmente, o mais evocado (“se cada freguesia é uma raiz/acabar com elas é destruir o país”), a que se juntava um apelo lancinante: “não nos tirem o que nos sobra”. A discordância total em relação à proposta do governo era evidente em todos os cartazes e nas conversas que se desenrolavam ao longo da manifestação: “Esta é uma lei sem pés nem cabeça que nem lembraria ao diabo fazê-la”, assim se exprimia uma mulher alentejana, magoada com tamanha afronta.
O país profundo desceu à capital porque esta é uma reforma que o abana. Gente que se recusou a abandonar a sua terra, com plena consciência de que os benefícios da civilização dificilmente ali chegavam, não aceita de bom grado que o alicerce da sua identidade seja desbaratado em nome de eficiências das quais desconfia. De modo algum os convencem de que as poupanças daí resultantes contribuam para a salvação do país. Eles que representam a percentagem mais ínfima das despesas do Orçamento do Estado. Como dizia um dos manifestantes, “somos uma pinga no oceano. Vão bater a outras portas!”
Gente de todos os quadrantes políticos, com uma boa percentagem de apoiantes desta maioria governativa, fez ouvir a sua voz. O Governo do PSD, provavelmente, continuará a fazer ouvidos de mercador. Obstinado na sua cegueira doentia de levar por diante, custe o que custar, os seus projetos, poderá conduzir o país para caminhos nada pacíficos. Os sacrifícios materiais são dolorosos de digerir, mesmo por gente que sempre a eles esteve habituada; mas se juntarmos a estes, outros sacrifícios de ordem psicológica, se abanarmos as raízes que davam algum sentido à vida de muita gente, o caso muda de feição. Não há nada mais doloroso, mais revoltante, do que sentir o cordão umbilical a rebentar, a alma a desfazer-se.
Apesar do ambiente de festa, aqueles rostos tisnados pelo sol e pela dureza do trabalho do campo revelavam uma forte disposição para enfrentar reformas cegas que não têm em conta realidades muito específicas do país. Os erros das reformas traçadas a regra e esquadro são por demais bem conhecidos. Um dos mais recentes, foi o da divisão de uma freguesia em duas. Quando os “artistas” chegaram ao terreno com o seu projeto feito no gabinete, constataram que o campo de futebol ficava metade para cada lado. Pode parecer anedota, mas não é.
Ninguém, com bom senso, afirma perentoriamente que o país não precisa de reforma administrativa. O que as pessoas pretendem é ser ouvidas, chegar a consensos, serem senhores do seu destino. E essa é uma regra da democracia, por muito que custe a certos governantes. Esta não é nem será a última reforma administrativa a que o país será submetido, mas era tempo de aprendermos com o passado. Basta estudar o processo atribulado das reformas que se fizeram no século XIX para se evitar a repetição dos erros cometidos.
O povo saiu à rua e tomou-lhe o gosto. O governo que se cuide. Não foi em vão que uma avenida se encheu de Liberdade.