I. A memória diz-me que terá sido “peculiar”, mas poderá muito bem ter sido “exótico”, “singular” ou até mesmo “esotérico”. O certo é que Passos Coelho, ao falar aos jornalistas depois da reunião que manteve com o Governo dos Açores, não resistiu a sublinhar o caráter – para ele – inusitado de um sistema fiscal que permite que os impostos gerados e cobrados numa região autónoma constituam receita própria dessa região.
Percebi que causa alguma espécie ao Senhor Primeiro-Ministro de Portugal que, num contexto de austeridade militante, exista uma entidade pública, a Região, e uma parcela de território, os Açores, que não tem de lhe perguntar o que fazer com as receitas fiscais de que dispõem. Percebi também que, se pudesse, o Senhor Primeiro-Ministro dava uma volta (constitucional, quem sabe) nisso, mas, já que não pode, decidiu ficar-se por uma singela autorização para que a Região, em assim decidindo, voltasse a dispor de um diferencial máximo de 30% em relação à fiscalidade do continente.
A isso, o PSD/Açores, pela voz do seu líder, chamou “excelente notícia”, congratulando-se penhoradamente pela “abertura e disponibilidade” do companheiro Passos Coelho. Duarte Freitas, sempre à procura de um clique na sua relação semimorta com os eleitores açorianos, ficou tão ufano com a possibilidade de alguém lhe reconhecer mérito na decisão do Senhor Primeiro-Ministro, que nem se lembrou que Passos Coelho estava apenas a dispor, sem consequências próprias, sobre os impostos dos outros.
II. A decisão de Passos Coelho não custa, de facto, um cêntimo à República, nem implica qualquer outra disponibilidade do Governo da Coligação que não seja a de viabilizar pelo voto uma alteração legislativa. A receita fiscal, maior ou menor, é dos Açorianos, paga pelos Açorianos, para usufruto dos Açorianos, quer o senhor Primeiro-Ministro goste e perceba, quer ache extravagante.
Outra coisa seria que, à semelhança do que vai ser feito em relação ao limite do diferencial fiscal, Passos Coelho tivesse demonstrado também vontade política para suspender os cortes nas transferências do Estado para a Região, a título de solidariedade nacional, que o mesmo Passos Coelho decidiu impor aquando da alteração da Lei das Finanças Regionais em 2013.
Isso sim seria ser magnânimo com o seu próprio dinheiro e reconhecer as especificidades e as justas pretensões dos Açorianos. Isso sim seria razão para que o líder do PSD Açores entoasse loas à sua própria capacidade de influenciar os seus companheiros da República. Isso sim seria o que os Açores merecem!
Foi por isso - e também por não querer que em Lisboa ficassem com a ideia de que tinha vindo fazer aos Açores o que sempre negou ao país - que o próprio Passos Coelho se viu obrigado a esclarecer o que se tinha prestado a fazer, desmentindo o seu companheiro Freitas. No Pico, a meio da viagem, disse taxativamente “aumentar o diferencial fiscal não é o mesmo que baixar os impostos”, acrescentando em seguida: “essa é uma decisão que só pode ser tomada pelos órgãos próprios da região, como é evidente”. Duarte Freitas teria preferido que fosse menos evidente, mas para isso seria necessário um outro tipo de relacionamento com a República social-democrata.
III. Quando eu era pequeno e aprendia uma nova habilidade, daquelas que as crianças vão adquirindo semana a semana, a minha mãe fazia questão de mostrar os progressos à família. Quando, por vergonha ou inaptidão, as coisas não saiam como era suposto, a minha avó, senhora de poucas políticas mas de fino pragmatismo, dizia então: “números mal ensaiados!”