Opinião

A Esquerda que governa

I. Toda a gente já percebeu que os partidos da Coligação no poder na República não se podem ver. Mas também toda a gente sabe que é irrevogável o pragmatismo que os senta à mesma mesa de cada vez que é preciso garantir os mínimos de coesão para que possam ser poder. Já à esquerda do espetro político, é um festival de convicções e um extenso rol de inultrapassáveis clivagens. Ninguém se senta com ninguém mesmo que isso signifique – e tem significado diversas vezes – entregar o ouro à Direita. O PCP nutre um histórico incómodo com os tiques burgueses do PS, esse traidor da luta de Abril, que se “adireitou” logo que chegou ao poder. Já para com o Bloco, o sentimento dos comunistas é de sobranceira irritação. Por sua vez, e por definição, o Bloco não faz concessões à realidade. Como tal, o PCP é cadavérico e o PS de um pragmatismo insuportável. Para os bloquistas, a política só tem sentido se for romântica e arrebatadora, mesmo que isso signifique um permanente desligamento das circunstâncias que ditam o exercício do poder. No meio está o PS, que aprendeu ao longo dos tempos que, para governar com estabilidade, ou a assegura sozinho ou mais facilmente a consegue à sua direita. II. Há, por isso, quem ache que, num cenário em que o PS não consiga obter maioria absoluta nas próximas Legislativas, todo o esforço negocial e de articulação programática deve ser feito com a Direita. São poucos, é verdade, e, a meu ver, não têm razão. Não têm razão, desde logo, porque com esta Direita no poder o PS não conseguirá conversar. Ultraliberal, voluntariamente sob a asa dos donos da Europa, cínica e rancorosa politicamente, esta Direita tem muito pouco de social-democrata e quase tudo de liberal-conservadora. Convive bem com um Estado reduzido ao mínimo mesmo nas suas funções sociais; nivela o mercado de trabalho por baixo, usando o desemprego como fator de pressão sobre a procura; considera os direitos adquiridos por quem trabalhou e descontou uma vida inteira como passíveis de serem indexados à produtividade da população ativa – enfim, lê por uma cartilha que o PS terá muitas dificuldades em compreender. Não basta alternância, como disse Ferro Rodrigues no Congresso do passado fim de semana, é necessária uma alternativa. Mas também não têm razão por uma questão puramente estratégica. As alternativas não se conseguem afirmar se assumirem um caráter de sucedâneas da governação. E se é verdade que o PS de Seguro parecia a margarina da manteiga que é a governação de Passos Coelho, o PS atual – já se percebeu – não tem vocação para aquilo a que Costa chamou “empastelamento” e que o povo reconhece pela expressão “farinha do mesmo saco”. O problema, portanto, subsiste à Esquerda. III. Tendo em conta que a metade que restou da liderança bicéfala do Bloco de Esquerda já deixou claro que continua a preferir a retórica e a poesia política à difícil arte de governar e que o PCP, por natureza, não muda, resta ao PS ser no fundo aquilo que constitui a sua essência: a Esquerda que governa. E estar disposto a governar implica definir aquilo de que não se prescinde, a margem de flexibilidade e abertura que se admite para gerar consensos alargados e um rumo razoável sem deixar de ser ambicioso. Foi isso que fez António Costa no XX Congresso do PS. Sem atalhos que o possam meter em trabalhos.