Opinião

História e Memória

I. Mark Twain – talvez o escritor menos lido e mais citado de todos os tempos – dizia que “se dissermos a verdade, não precisamos de nos lembrar de nada”, porque a memória reinterpreta ao passo que a história recupera. Os partidos têm História mas não têm Memória. A história é contada pelos factos, pelos resultados, pelos documentos e pelos jornais, enquanto a memória é o resultado de um processo de reflexão sobre essa mesma história. Logo, a memória é sempre ponderada pelo interesse, pelo contexto, pela tática e pela estratégia. Presta-se a interpretações, varia com os ciclos de poder interno e com os objetivos de poder externo. É por isso que os partidos têm história e memórias, no plural, condicionadas ao tempo e aos interlocutores, às exigências da conquista e, por vezes mesmo, apenas às agruras da sobrevivência. A história engrandece, dá lastro e volume, torna qualquer grupo de poder conjuntural parte de uma alma partidária cheia de lutas, conquistas e derrotas dignas; a memória – a da consciência – atrapalha, limita, constrange. II. Veja-se, por exemplo, o tão em voga conceito de renovação, que passou de processo a valor político porque a história venceu a memória. Hoje em dia não há partido que não cante loas à renovação enquanto demonstração clara de que ainda há apelo e ligação à sociedade civil, e de que o futuro estará sempre assegurado. Esta renovação é quantitativa, feita de idades e de anos de atividade política, não de procedimentos, de ideias ou de anseios. É medida pela história, não é construída pela e com base na memória. É por isso que um político com 30 de atividade política em exclusividade significa renovação se o termo de comparação for um político com 45 anos de atividade política. É por isso também que um cabeça-de-lista que não estava, por acaso, naquela mesma lista há quatro anos atrás, mas que esteve em quase todas as listas daquele partido nos últimos 30 anos, tendo sido membro do Governo, deputado, líder parlamentar, autarca e etc., significa renovação se comparado com um político que era cabeça-de-lista há quatro anos atrás. É ainda por isso que um político com 30 anos de idade e eventualmente 15 de militância, desde as juventudes partidárias, significa renovação quando comparado com alguém que se iniciou na atividade política há pouco tempo mas que tenha mais de 50 anos de idade. Tudo isto é verdade porque estamos a falar de critérios quantitativos em detrimento do que faz verdadeiramente valorar o contributo de cada um para a atividade política. A memória é menos assética e mais comprometedora, mas, talvez por isso mesmo, é mais humana. Exige um juízo, uma atribuição de significado, um tomar parte e partido. A história, por sua vez, permite uma racionalidade instrumental, em que o meio é o que o fim ditar e o argumento é o que a conclusão exigir. III. O mais curioso é que o renovador não é, normalmente, objeto de renovação, ainda que possa cumprir todos os requisitos, mesmo com base em critérios históricos. Curioso também é que até há casos em que o paladino da renovação de hoje pode ter sido objeto de renovação num passado recente, sem que isso o tenha tornado consciente da amoralidade do processo. É assim quando não há memória. Ora somos agentes da renovação, ora somos renovados. O motor não para, a dinâmica alimenta-se a si própria, a história não faz questão de se harmonizar com a memória. E ao contrário do que possa pensar, caro leitor, pôr nomes às coisas, neste caso concreto, não faz assim tanta diferença. Admito que aumentasse o apelo, mas não mudava o cerne da questão, que é do nosso tempo e estrutural. Hoje foi com Mota Amaral, amanhã será certamente com Berta Cabral. Ou será que já foi?