Opinião

Crónica da normalidade

I. Estranhamente, ou talvez não, o país tranquilizou-se. Cavaco recolheu ao seu estatuto de futuro ex-Presidente. O Governo tomou posse e governa, sem que os amanhãs tenham começado a cantar, mas também sem que a Revolução tenha tomado de assalto as consolidadas instituições democráticas. A Coligação, agora na oposição e cada vez mais menos coligada, embuziou. Dedica-se a workshops de indignação, sessões de terapia de raiva e retiros de recuperação da alma reaccionária. Portas foi a Peniche dizer aos jovens populares que as utopias dão cabo da juventude. Passos, mais comedido, começa a perceber que tem primeiro de lidar com os seus e que deve concentrar as energias a garantir a sua continuidade na liderança do PSD. Nenhum deles aceitou ainda engolir o sapo da governação de Esquerda, mas ambos, cada um à sua maneira, perceberam que o tempo é de reequilibro de forças e reajustamento estratégico. Pensar primeiro e falar depois, quando houver oportunidade de ganhar alguma coisa com o que se diz. II. Como é habitual em períodos de transição governativa, este é também o tempo em que as pessoas começam a perceber que o que lhes disseram os governantes não correspondia exactamente ao que se passava. A devolução da sobretaxa de IRS, que em tempo de arregimentação de votos, chegou a uns “prováveis” 37% em 2016, afinal, à data de saída do Governo do PSD e do CDS/PP, estaria próximo de uns inaceitáveis 0%. O défice, que o Governo Passos/Portas garantia que estaria nos 2,7%, abaixo, portanto, do limite fixado pela Comissão Europeia (3%), afinal vai ter de ser objecto de medidas de contenção orçamental interna para poder rondar os 3%. E, para não irmos às gavetas todas, o sistema financeiro e bancário afinal, e apesar das juras da anterior Ministra das Finanças, continua a sofrer de instabilidade e de falta de estratégia, tanto no caso do processo de venda do Novo Banco como no processo de reequilibro do BANIF. Como é também normal nestes casos, os ex-governantes dizem que deixaram a casa toda arrumada, quando toda a gente já percebeu que não a limpavam desde as eleições e que o brilho que puxaram aos móveis naquela altura apenas disfarçava os riscos e as nódoas. III. Para acentuar a normalidade, estamos também em período de campanha eleitoral, que, pela primeira vez no último ano, coincide de facto com o próximo ato eleitoral calendarizado – estivemos a discutir candidatos presidenciais durante a pré-campanha das legislativas e programas de Governo em plena campanha presidencial … agora, para variar, debatemos candidatos presidenciais durante a campanha para as Presidenciais. Como é típico do nosso figurino político, a Direita tem um só candidato e a Esquerda uma pluralidade de hipóteses de gastar votos. Por isso, na primeira volta o candidato apoiado pelos partidos de Direita parece sempre maior e mais forte do que eventualmente é, enquanto os de Esquerda parecem sempre mais interessantes e necessários a nichos de eleitorado do que de facto são. Conclusão, a questão, como sempre acontece, está em saber se teremos segunda volta – este vosso humilde aprendiz de analista, acha que muito provavelmente, e para mal dos seus pecados, não teremos. IV. Resta a anormalidade, que também é normal, de termos sido fustigados nos últimos dias por ventos, marés, chuvas e esta mistura típica de serenidade e receio, que faz de nós, Açorianos, o que realmente somos: resiliência, cautela e fé. Acho que não o trocaríamos por nada mais fácil que não fosse aqui. Nestas nesgas de pedra escura e dura rodeadas da Força da Natureza por todos os lados.