Opinião

Anda triste este povo, nem o seu Carnaval

É porque, como se não bastasse, não nos leva apenas os nossos avós, nossos pais, muitos dos nossos mais frágeis, muitíssimo antes do tempo. É porque, como se não bastasse, não nos leva apenas, das mesas, o pão, o pão dos mais pobres, o pão dos mais despedidos. É porque, como se não bastasse, não nos leva apenas a liberdade de sairmos de casa, indo ver outros mundos ou tão só rua abaixo. É porque, como se não bastasse, não nos leva apenas os amigos e a sua preciosa presença como os novos amigos que não mais se conhecem. É porque, como se não bastasse, não rouba dos jovens apenas a aurora, aferrolhando-os nos quartos, impedindo-os de ser e de crescer com o mundo, de a ele abrir portas e de nele existir. É porque, como se não bastasse, o móbil do crime é que na rua é pior, é pior que estar preso, é a morte a espreitar. É porque, como se tudo isso, afinal, não bastasse, o que ele quer é a alma. A alma de todos. A alma do povo. A cultura do povo. A sua forma de estar, de ser em seu ritmo, a sua música própria e o seu modo em que a baila. Como olha o que é belo, o que acha que é belo, como expressa o que sente numa obra de arte. É isto que ele quer. Também isto que ele quer, como se o mal não bastasse.
O clima geral é de sobrevivência. Pressentimos presença de um tal predador, como um monstro escondido por debaixo da pele de um amigo estimado. E tudo vive assustado. Qualquer galho a estalar, é chacal que nos ronda. Qualquer tosse mais funda, são já dentes cravados. Não há hora em que o tiro, disparado no escuro, lhe atinja na fronte e que o mate, de sorte. E que o mundo ressurja, não mais como dantes, mas que o mundo renasça desta noite de inverno. Quando então for manhã, que os abraços se vejam. Quando o sol despontar, encham tudo com gente. Que transbordem as ruas, esplanadas, cafés, e que o dia não pare se não der seu lugar a uma festa junina, ou de máscaras postas, mas por ser carnaval. Que o carnaval não se fique e se vingue da besta. Que não sejam três dias, nada menos que o dobro, não, o dobro ao quadrado. Que se oiçam risadas, por mais vãs que pareçam, que se dancem no gozo as cantigas mais pimba, e que até de manhã ninguém queira dormir. É que os ventos da serra não sabem a cedro, as brumas dos mares já não fazem sonhar, já nem junto dos nossos nos podemos sentar quando sempre e, enfim, finalmente os ganhaste.
Carnaval a caminho. E afinal já não vem. Anda triste este povo, nem o seu carnaval.
Ele chegou-lhe no osso.