Opinião

O que realmente está em causa no Orçamento de Estado

A utilização do défice para financiar as políticas públicas constitui um tema central num debate orçamental. Este ano tornou-se no centro do debate do Orçamento de Estado.
Porquê reduzir tanto o défice este ano (baixa de 2,8% do PIB para 1,9%), quando se enfrenta uma pressão inflacionista externa?
Será a redução do défice, como dizem alguns, apenas "uma ambição de bom aluno para Bruxelas registar", "um capricho técnico" ou um "objetivo para ficar no curriculum de um governo", ou até um mero debate ideológico?
Para a generalidade das pessoas, ter mais 1% ou menos 1% de défice nada diz nem nada representa. No entanto, essa decisão terá um profundo impacto na vida de todos nós.
Sendo uma questão aparentemente técnica, os seus efeitos são na prática muito concretos e por isso é essencial que todos percebam o que efetivamente está em causa por detrás deste debate de números e percentagens.
No atual contexto, alguns consideram que é um erro reduzir o défice, quando se devia era aumentar mais a despesa pública.
Esta abordagem, sendo a mais fácil no curto prazo, tem no atual contexto consequências contrárias à bondade aparente dessas opções.
Vivemos nos últimos 12 anos uma conjuntura internacional de taxas de juro historicamente baixas. Associado a isso, a credibilidade crescente de Portugal, nos mercados internacionais permitiu aproximar a taxa de juros do nosso país aos valores dos países do centro da Europa.
Conjugadamente, esta situação permitiu, desde 2015, que Portugal pague agora menos 3.000 milhões de euros de juros da dívida pública do que pagava em 2015, tendo essa poupança sido canalizada para reforço das medidas de apoio às empresas e famílias.
A atual conjuntura perspetiva a partir do segundo semestre deste ano uma subida das taxas de juros como medida eficaz de controlo da inflação. Este facto, já concretizado pela Reserva Federal americana e já anunciado pelo Banco Central Europeu, irá colocar-nos perante um novo desafio e aumentar o custo no financiamento dos défices públicos dos países.
Bastará fazer uma conta simples para percebermos a dimensão desta realidade: Portugal tem uma dívida pública de 290 mil milhões de euros, com um prazo de maturidade médio de 7,4 anos, ou seja, por ano terá de se refinanciar em 40 mil milhões de euros para amortizar dívida pública que se vence.
Cada 1 ponto percentual de aumento da taxa de juros implica um custo acrescido por ano, a Portugal, de 400 milhões de euros só em refinanciamentos.
Neste contexto, a opção é muito clara - é saber se queremos gastar mais 400 milhões de euros, por cada 1 p.p. de aumento da taxa de juro, em transferências para os mercados financeiros internacionais, em detrimento da aplicação desses recursos no apoio à educação, à saúde, no apoio às famílias e empresas e na recuperação dos serviços públicos.
É por isso que o debate sobre o défice não é uma questão técnica, nem uma mera discussão de percentagem para satisfação intelectual de alguns e indiferença da generalidade das pessoas.
Não, por detrás dessas tecnicidades estão decisões com consequências futuras na vida de todos nós.
E o mais curioso é que aqueles que no passado mais diabolizaram os mercados financeiros internacionais são agora os que defendem que se deve aumentar o défice para combater os efeitos de uma situação conjuntural.
O problema é que com isso estão a assumir que querem que o Estado transfira no futuro mais recursos públicos para esses mercados financeiros em detrimento da educação, da saúde e dos serviços públicos. O que constitui uma total contradição.
Por isso é de esquerda, verdadeiramente de esquerda, na atual conjuntura, reduzir em Portugal o défice público como forma de assegurar que os recursos públicos continuem a ser canalizados para quem mais precisa, para apoiar as empresas e famílias, reforçar as políticas de saúde e educação e os serviços públicos, dinamizar a economia, e que esses recursos não sejam canalizados para financiamento dos mercados financeiros internacionais, por via do pagamento no futuro do aumento dos desequilíbrios orçamentais presentes.
É isto que está verdadeiramente em causa quando se discutem percentagens de défice no atual debate do Orçamente de Estado.
Não é uma questão técnica, nem um mero objetivo quantitativo para ficar no curriculum de um governo, é uma decisão estrutural que afeta a todos e que, com coragem, importa assumir, para que um aparente benefício de hoje não se transforme num problema acrescido no futuro próximo.