Opinião

Autonomia, a Livre Administração dos Açores pelos Açorianos

Hoje comemoramos o quadragésimo sétimo aniversário da Autonomia Político Administrativa dos Açores. Evocar o momento fundacional da nossa Autonomia consagrada na Constituição da República Portuguesa é algo que deve ser realizado tendo memória do passado, consciência do presente e confiança no futuro da Região.
Desde o século XV e durante mais de três séculos os Açores foram administrados por um regime senhorial de natureza administrativa de Capitães do Donatário hereditários, um modelo de inspiração feudal.
Em 1766 o Marquês de Pombal implementou uma profunda reforma na estrutura governativa nos Açores. A Região passou a constituir uma província e foi estabelecido um governo centralizado com sede em Angra do Heroísmo, liderado pelo todo-poderoso Capitão-general. Esta nova figura acumulava amplas competências, concentrando poderes administrativos, judiciais, policiais e militares. Estávamos na fase de consolidação do absolutismo no nosso País.
A primeira metade do Século XIX é dramática para Portugal, marcada por invasões, guerras, uma revolução, instabilidade social e caos nas finanças públicas.
A Revolução Liberal de 1820 foi iniciada por um pronunciamento do exército no Porto, que exigia uma constituição, e pela burguesia da Invicta, revoltada pelos efeitos negativos da abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. A Constituição Liberal, aprovada em 1822, define os Açores e a Madeira como “Ilhas adjacentes”. O texto constitucional despromovia o Brasil à condição de colónia. Este facto veio a contribuir para a independência desse grande país sul-americano, o que provocou em Portugal grande desespero e a sensação de um declínio irreversível do país.
Na imprensa de Ponta Delgada e de Angra, esses acontecimentos ecoaram com estrondo. Surgiram vários artigos em jornais manifestando receio por uma eventual integração ibérica, o que levou algumas personalidades a defender a integração dos Açores no Reino Unido ou nos Estados Unidos da América.
Na última fase da guerra civil do Liberalismo, 1832-34, o governo procurou desenvolver o País. Nesse período é de assinalar as reformas de Mouzinho da Silveira que introduzem a reforma dos impostos, a criação dos distritos administrativos e a redução de mais de metade dos municípios portugueses. A divisão administrativa do território português passou a ser distrital, competindo à nova figura do Governador Civil a gestão do distrito.
Com o fim das guerras civis surge, em 1838, uma nova Constituição que não altera o quadro de indiferença de Lisboa em relação aos Açores e à Madeira.
Na segunda metade do Século XIX, assistiu-se a uma certa estabilidade política no Reino de Portugal. Inicia-se, em 1851, o período da Regeneração cujo primeiro governo introduz uma grande inovação: o Ministério das Obras Públicas, confiado a Fontes Pereira de Melo. O novo Ministro ficaria célebre pelo desenvolvimento de grandes projetos de obras públicas, com destaque para a construção das primeiras linhas de caminho-de-ferro e para a instalação do telégrafo. Infelizmente o “Fontismo” não teve expressão na Região, o que fez crescer um sentimento de deceção face às expectativas criadas pelo Liberalismo.
O desalento face a Lisboa também é influenciado pelas reflexões de Antero sobre a decadência nacional. A contestação à política fiscal penalizadora implementada pela Coroa e à liberalização do comércio do álcool produzido nos Açores geraram a agitação social que vai fazer surgir o Primeiro Movimento Autonomista, com implantação sobretudo em São Miguel e na Terceira.
Em Fevereiro de 1893 diversas personalidades micaelenses fundam a primeira Comissão Autonómica de Ponta Delgada, presidida pelo advogado Aristides Moreira da Mota. No mês seguinte inicia-se a publicação do semanário “Autonomia dos Açores” que seria o porta-voz da causa autonomista durante dois anos. A Comissão também aprova uma bandeira e um hino autonómicos. Na mesma altura o artista Augusto Cabral pinta a icónica Torre Autonómica que se torna num símbolo intemporal.
Aristides da Mota era representante de Ponta Delgada na Câmara dos Deputados do Reino quando o Rei Don Carlos dissolve essa assembleia em Abril de 1892, na sequência de uma crise política ainda decorrente do Ultimato Inglês. É nessa circunstância que no dia 2 de Março de 1895 é aprovado o primeiro Decreto Autonómico dos Açores. Esse Diploma acabou sendo aprovado por decreto ministerial do governo, uma vez que o país vivia em ditadura devido à dissolução da Câmara dos Deputados. Curiosamente, nessa altura, o Primeiro-ministro de Don Carlos era o ilustre micaelense Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. O Decreto aprovado era um compromisso face a uma proposta inicial de Aristides Moreira da Mota muito mais ambiciosa. O novo quadro legal previa a criação de distritos autónomos com competências meramente administrativas. Os novos órgãos executivos distritais, as juntas gerais, tinham como receitas apenas 1/3 dos impostos cobrados nas alfândegas do distrito. O Decreto previa ainda a eleição dos membros da Junta através de sufrágio censitário, só homens com mais de 21 anos, não analfabetos, com propriedades e rendimentos, podiam votar. Foram criados os distritos de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e do Funchal - a Horta optou por continuar a depender de Lisboa.
A Revolução Republicana portuguesa de 1910 e a nova Constituição de 1911 não alteraram o estatuto da Autonomia Distrital dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.
Na Primeira República (1910-1926) viveu-se novamente uma enorme instabilidade política em Lisboa, os pronunciamentos militares eram uma constante e os governos sucediam-se uns aos outros. Entre 1920 e 1921 tomam posse 14 governos diferentes.
É sem surpresa que a 28 de Maio de 1926 surge um novo golpe de estado protagonizado por militares. Uma frente anti parlamentar e anti partidos que proponha ordem através de autoritarismo e da supressão das liberdades.
Nos anos 20 do Século XX ressurge um novo ímpeto autonomista, desta vez impulsionado por José Bruno Tavares Carreiro, natural de Coimbra. José Bruno é uma figura central do Segundo Movimento Autonomista. Em Lisboa era suspeito de conspirar a favor da independência dos Açores devido à sua proximidade com o Almirante Dunn, responsável pela Base Naval da US Navy que funcionou em Ponta Delgada, entre 1917 e 1919, no final da Primeira Guerra Mundial.
José Bruno fundou o Correio dos Açores em 1920 e utilizou esse jornal como um instrumento de dinamização da causa autonómica e de participação de diversos intelectuais nacionais, entre os quais Raúl Brandão autor do livro Ilhas Desconhecidas. Em 1921, Francisco d’Athayde de Faria e Maia, senador pelo distrito de Ponta Delgada, apresenta um projeto de Lei de Autonomia Administrativa dos Distritos Açorianos que não chegou a ser apresentado devido a nova dissolução do Parlamento.
A 16 de Fevereiro de 1928 é finalmente aprovado um novo Decreto que ampliava as competências das juntas gerais e aumentava as suas receitas. A iniciativa deveu-se ao faialense Coronel Silva Leal, representante dos Açores no Parlamento nacional, por nomeação do governo, e famoso pelas suas campanhas militares em África. Porém, em Abril do mesmo ano, o novo Ministro das Finanças, Oliveira Salazar, aprovou um outro decreto que anula o de Fevereiro, que na prática nunca vigorou. Os avanços da reforma de Silva Leal caíram por terra.
Ainda em 1928 é publicado o livro A Pátria Açoreana, da autoria de Gervásio Lima, um obra que refletia nos Açores a corrente do Romantismo literário inaugurada em Portugal por Almeida Garrett e o seu célebre livro Viagens na Minha Terra.
Em 1931, irrompe em Ponta Delgada a chamada Revolta dos Deportados. Os revoltosos eram hostis à ditadura resultante do Golpe de 28 de Maio. O governo em Lisboa deportava os opositores para os Açores e estes conspiravam contra o regime, acabando por desencadear uma revolta. Chegam a criar uma junta geral revolucionária, prendem diversas pessoas, ganham muitas adesões mas acabam por ser detidos e condenados. A Autonomia continuava sem progressos.
Na sequência da elaboração da Constituição de 1933, que instituiu o Estado Novo, gera-se uma grande indignação nos autonomistas açorianos. Aristides Moreira da Mota, na altura já com mais de 70 anos, escreve um artigo indignado pelo facto da nova Constituição “ter esquecido a Autonomia”.
Entretanto Salazar vai consolidando o seu poder, já não como Ministros das Finanças mas agora como presidente do conselho. Para esse efeito o ditador adota a velha tática dos centralistas: a asfixia financeira das Autonomias, atribuindo competências às juntas gerais sem contemplar transferências financeiras. Salazar também alterou a eleição para as juntas gerais, que passam a ser eleitas por um colégio eleitoral composto por personalidades controladas pela PIDE e pelo governo de Lisboa. O presidente da Junta Geral passa a ser nomeado pelo Governador Civil do distrito.
Em 1940 é aprovado o Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, elaborado por Marcelo Caetano, que aumenta a centralização, restringe os meios financeiros e excluí qualquer representatividade política e poder de decisão aos arquipélagos portugueses. Desta vez a censura não permitiu contestação nos jornais.
As juntas gerais aumentam o número dos seus funcionários, o que gera constrangimentos financeiros crescentes. As juntas só conseguiam manter as escolas e proceder à reparação de estradas. O distrito de Ponta Delgada e de Angra conseguem instalar o ensino até à 6ª classe. O distrito da Horta, constituído em 1940, só teve meios para ir até à 4ª classe. 
Aos dois primeiros movimentos autonomistas sucedeu uma terceira vaga, iniciada nos anos de 1960, na sequência das desilusões com o papel do Estado Novo no desenvolvimento dos Açores. Convém recordar que entre meados da década de 1950 e 1975 emigraram cerca de 150.000 açorianos para os EUA e para o Canadá. Apesar de alguns investimentos nas cidades do arquipélago, os Açores viviam abandonados pelo poder central e a vida era miserável para a maioria da população.
O Terceiro Movimento Autonomista foi dinamizado pelo Instituto Açoriano de Cultura (IAC), fundado em 1957. O IAC organizou três Semanas de Estudo, em 1961, 62 e 63, que fariam avançar a causa autonómica, designadamente a ideia de olhar para os Açores como uma única região e não como três distritos de costas voltadas. Essas iniciativas contaram com a participação de prestigiados professores do Seminário de Angra e com o apoio discreto da Igreja Católica. Foram os casos de José Enes, natural das Lajes do Pico, e de Artur Cunha de Oliveira, que residiu muitos anos na ilha Terceira. Ambos estudaram em Roma, conheceram o Regionalismo italiano e colheram a influência do Concílio Vaticano II e da atenção que a Igreja passou a conferir às questões da descolonização, do desenvolvimento e da justiça social, aprofundando a famosa Encíclica “Rerum Novarum”, de 1891, que abordou a condição dos operários e instituiu a Doutrina Social da Igreja Católica.
O Terceiro Movimento Autonomista é marcado por várias influências intelectuais, sendo incontornáveis os nomes de Vitorino Nemésio e de Natália Correia, e pela ação da Oposição Democrática ao Estado Novo. Os oposicionistas ao regime organizaram-se em torno da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) para concorrerem às eleições legislativas de 1969 contra o partido do regime, a União Nacional, obtendo o melhor resultado oposicionista do país no distrito de Ponta Delgada.
A consagração dos ideais do Terceiro Movimento Autonomista só seria atingida depois do 25 de Abril de 1974. O ciclo político aberto pela Revolução de Abril permitiu, por ação do Povo e dos partidos políticos, sobretudo do PS, fundado em abril de 1973, e do PSD, que surgiu em maio de 1974, criar os consensos que consagraram a Autonomia na Constituição democrática de 1976. Nos trabalhos da Assembleia Constituinte, na qual o PS detinha a maioria, o deputado açoriano Jaime Gama assumiu a presidência da Comissão Parlamentar das Regiões Autónomas, órgão decisivo para a consagração constitucional da Autonomia Política e Administrativa Regional.
O período de elaboração da Constituição foi muito agitado no país e na Região, sobretudo entre 11 de março e 25 de novembro de 1975. Durante um período que se iniciou nesse longo Verão, várias personalidades políticas açorianas hesitaram entre a independência da Região e a causa da Autonomia dos Açores. Muitos chegaram mesmo a agitar-se com uma manifestação inicialmente de lavradores, em junho de 75, em dia de feira do gado, que acabou sendo manipulada por uma organização independentista, hoje defunta. 
A atual Autonomia Constitucional é uma ambiciosa Autonomia Política e Administrativa Regional, dotada de um Governo Regional e de uma Assembleia Legislativa representativa de todos os açorianos. É uma solução incomparavelmente mais avançada face à antiga autonomia administrativa distrital que vigorou até ao 25 de Abril.
O percurso até à consagração da nossa Autonomia na Constituição de 1976 foi um caminho longo e difícil, de quase um século, marcado por inúmeros percalços e contrariedades.
O nosso percurso ao longo de 47 anos de Autonomia Constitucional é uma história de sucesso. Os Açores são hoje uma Região irreconhecível. Todos os governos e todas as maiorias cometeram erros, enfrentaram dificuldades e alcançaram sucessos. Uns mais do que outros, é certo, mas no essencial os Açores desenvolveram-se e progrediram.
O sucesso da nossa Autonomia não significa que atualmente esta não se confronte com grandes desafios e mesmo com incertezas e inquietações. Porém, como sempre, competirá às açorianas e aos açorianos, de todas as gerações, envolverem-se e participarem nas lutas sociais e políticas que definirão o futuro da nossa Autonomia. Só assim será possível dar uma nova expressão ao velho sonho fundacional dos primeiros autonomistas, “a livre administração dos Açores pelos açorianos”.