Opinião

Tempos de servidão

É domingo, dia de descanso, dia dedicado à família, dia de recuperar energias e enganar o cansaço.

Levantei-me cedo, como é hábito desde que me conheço, enquanto os restantes habitantes cá de casa permaneceram num sono profundo. Sempre gostei deste bocadinho de silêncio para adiantar trabalho, seja ele de que tipo for, para me inteirar das notícias do dia, para responder aos emails que ficaram pendentes durante a semana, ou simplesmente para disfrutar do silêncio de um lar adormecido.

Neste domingo em particular, tenho de cumprir com o compromisso de enviar este artigo até à próxima terça-feira, mas, como não gosto nada de iniciar a semana com pendentes, optei por usar este bocadinho para juntar algumas palavras.

As notícias na ordem do dia são, lamentavelmente, a morte de Odair Moniz, que traz ao de cima tudo aquilo que de mau tenho em mim; e o 42º congresso do PSD, onde Luís Montenegro anunciou sete medidas que o Governo quer implementar, sendo que aquela que mereceu um maior aplauso foi (pasme-se!) o anúncio de que vai mexer na disciplina de Cidadania, para a libertar de ideologias. Esta preocupação, proferida pelo 1º Ministro de Portugal, se fosse brincadeira, até tinha alguma piada, mas, não sendo, deixa apenas transparecer uma total ausência de ambição que, a meu ver, é deprimente. Será esse um assunto prioritário para quem governa o nosso País? Será porventura, e considerando os verdadeiros problemas com que se depara a escola pública, aquilo em que se deve centrar a educação? Será que ninguém conseguiu alertar S. Exa. Para o ridículo da situação? Será que vale tudo para agradar à extrema-direita? Haja decoro e respeito pelas funções que exercem!

Na passada semana, no bairro do Zambujal, em Lisboa, o cabo-verdiano Odair Moniz, de 39 anos, pai de três filhos, descrito por todos como um homem de bem, trabalhador e pacífico, foi morto com dois tiros à queima-roupa, disparados por uma agente policial. Do lado da PSP, ainda sem o resultado de um processo de inquérito que venha a permitir que se apure aquilo que na verdade aconteceu naquela fatídica segunda-feira, a versão dos factos é sustentada na desculpabilização da acusação dos seus agentes, e na mais do que provável culpa da vítima. É exatamente esta forma precipitada, irresponsável e incoerente, de se opinar publicamente por algo cuja verdade dos factos todos desconhecem, que não raras vezes leva a um clima de guerra como aquele que se viveu por toda a cidade de Lisboa, claramente alimentado pela revolta popular. Se a este cenário juntarmos as declarações da extrema-direita, nomeadamente a do deputado Pedro Pinto, que diz que se os policias "disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem", e outras tantas barbaridades que mais não fazem do que instigar o ódio e a violência, a certeza de que estamos a trilhar caminhos extremamente perigosos torna-se uma constatação aterrorizadora.

Não é este o mundo que quero deixar à minha filha e ao meu filho; às filhas e filhos dos outros; a todos os netos e bisnetos... E é exatamente por isso que continuo a acreditar, como tão bem escreveu Manuel Alegre, que:

“Mesmo na noite mais triste

em tempo de servidão

há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não.”