CONGRESSO REVOLUÇÃO DE ABRIL.
PORTUGAL 1974-1975
PAINEL: AUTONOMIAS E PODER LOCAL
Teatro D. Maria II – Salão Nobre
24 de Abril de 2014
Começo por saudar todos os presentes, agradecendo o convite para participar neste Congresso e neste Painel.
Como todos os que têm pelo menos a minha idade, as vivências associadas ao dia daquela que foi para mim a “revolução pela telefonia” – a 1643 km de mar, numa terra onde se liam os jornais do dia vários dias depois – são inesquecíveis.
Entre os meus 17 e 18 anos de idade foi como se, nesses dias, tivessem decretado o termo da minha adolescência cívica. Era preciso começar a construir desmantelando alicerces estabelecidos; era necessário trabalhar para ajudar os militares (em Ponta Delgada estavam Melo Antunes e Vasco Lourenço) a neutralizar os activos do regime; era preciso dar vida a novas representações. Assim foi.
Aos poucos fomos invocando e celebrando a Liberdade - pensando no que podíamos fazer de diferente e como o poderíamos fazer. Daí até à recuperação das “históricas aspirações autonomistas” – para citar o texto constitucional na parte há 40 anos em vigor – foi um passo, num caminho que conheceu, justamente no período que decorreu até à aprovação da Constituição da República de 1976, os seus momentos simultaneamente mais inovadores, perturbadores e materializadores. De facto, os anseios autonómicos encontraram nos primeiros exercícios de aprendizagem da Democracia a sua livre expressão e o seu caminho de concretização.
Disso também falarei, ainda que de forma sinóptica, reportando-me, conforme foi recomendado, aos dois primeiros anos após o 25 de Abril.
O Poder Local e o Poder Regional – verdadeiras infraestruturas da nossa Democracia – consolidaram-se em paralelo mas, na verdade, enquanto o Poder Local se reconstrói na linha do municipalismo português, o Poder Regional, saído da Constituição de Abril, desenvolve-se em rotura com a tradição política e administrativa portuguesa do continente e das ilhas e na decorrência de aspirações seculares.
Faço aqui um breve parêntesis para, reconhecendo a escassa tradição do regionalismo no Continente, afirmar a minha convicção de que da concretização de um tal processo resultariam, certamente, sinergias que proporcionariam eficiências e a superação de gritantes lacunas de planeamento à escala regional que têm acentuado descontinuidades e desigualdades no desenvolvimento do território continental.
Usando as palavras de Avelino Meneses – a Açorianidade, razão mais profunda do autonomismo, “é fruto de uma vivência de meio milénio num ambiente diverso do continental”.
Na verdade, do ponto de vista da leitura social e histórica do processo açoriano de aquisição de uma cultura autonómica, a Política e a Geografia são as contribuintes mais activas e permanentes ao longo dos séculos: por um lado, o abandono, conatural do centralismo, ajudou a uma amplificação de problemáticas próprias que evoluíram para uma dimensão política regional e, por outro, a distância das ilhas e as descontinuidades territoriais representaram um elemento cultural permanente e diferenciador.
Como, a propósito, anotou Eduardo Lourenço, na VIII Semana de Estudos dos Açores, "na ordem política não há inocentes, e na ordem cultural, essência efectiva de todo o sentimento autonomista com um mínimo de expressão, não há culpados”.
Desse modo, podemos dizer que o 25 de Abril, entre as suas múltiplas dimensões positivas, tanto libertadoras como inclusivas, interpretou e concretizou uma solução que se revelava como historicamente inevitável, embora indissociável da democracia, fazendo uma opção de organização do Estado diferenciada à época de outros casos do regionalismo europeu.
O percurso na luta pela descentralização antes do 25 de Abril teve uma intensidade maior nos Açores do que em qualquer outra parte do território continental e da Madeira. Nos Açores é mais expressivo nas ilhas de S. Miguel e Terceira e protagonizado, sobretudo, pelas elites empresariais e intelectuais, apesar das várias ocasiões em que estas abdicaram ou fraquejaram.
As referências anteriores ao 25 de Abril são múltiplas e estão já muito detalhadas na abundante historiografia que tem surgido e continua a surgir. Para uma das conclusões a retirar, importa aqui salientá-las.
Desde logo, como recorda Medeiros Ferreira, “a primeira vez que os Açores são encarados no seu conjunto como entidade administrativa é com a criação em 1766, pelo Marquês de Pombal, de uma só província…” abrangendo todas as ilhas. Assim foi durante mais de sessenta anos, num figurino, todavia, urdido de forma extremamente centralizada com delegados em todas as ilhas.
No século XIX, com a vitória do Liberalismo, desponta um novo modelo político-administrativo, impulsionado pela luta das elites insulares, organizando o arquipélago açoriano de forma mais desconcentrada. Representou um passo em frente, mas cedo os mais empreendedores compreenderam que sem leis adequadas à realidade insular e protectoras das suas actividades e especificidades a configuração administrativa inovadora pouco ou nada acrescentava.
A luta que culminou na aprovação do Decreto Autonómico de 1895 (considerado uma referência matricial do processo autonómico bem sucedido com o 25 de Abril) foi gerada em reacção a um conjunto de medidas e de propostas que suscitaram contestação local generalizada, e estimularam uma consciência progressiva de afirmação e defesa da “livre administração dos Açores pelos Açorianos”. Entre essas medidas afrontosas estavam a extinção das Juntas Gerais, a pretexto do seu alegado despesismo, o aumento da carga fiscal, a intenção de constituir um monopólio nacional do álcool, o que era visto como um ataque às indústrias locais, ou a pretensão de fazer com que fossem os açorianos a pagar os custos do lançamento do cabo submarino entre o continente e as ilhas, através de um adicional de 25% no esforço tributário.
Na exaltação deste movimento tocou-se o Hino Popular da Autonomia, cujo refrão dá bem conta da densidade emocional do processo ou, pelo menos, dos protagonistas: “Para nós é vergonhosa/ A central tutela odiosa./Que em nossos lares recai./ Povos! Pela Autonomia!/Batalhai com valentia,/Com esperança batalhai!”
O Decreto de 1895 foi, apesar de tudo, um passo em frente gerador de melhorias, mas igualmente de espectativas goradas por falta de alocação dos meios indispensáveis. Promulgado pelo governo do açoriano Hintze Ribeiro, fixou uma nova estrutura administrativa em que se restabeleciam as Juntas Gerais Distritais com competências tais como a administração de bens, pequenas obras de construção e reparação, subsídios a estabelecimentos de beneficência e de educação e a municípios. Estavam todas, porém, sujeitas a uma sufocante tutela, reforçada com a Carta de Lei de 12 de Junho de 1901, a qual, a pretexto de o tornar extensivo à Madeira, acrescentou muitas mais restrições.
Nos anos vinte do século passado é aprovado um novo decreto com mais receitas para as Juntas Gerais, mas Salazar, chegado, pela segunda vez, ao Ministério das Finanças, em nome da crise orçamental, consente nas competências e corta nas verbas.
O Estado Novo acaba por aceitar que a administração das ilhas tenha por base uma lei especial, mas sem admissão de autonomia política, e verte esse conceito na Constituição de 33 e, mais tarde, em 1938, nas Bases da Administração do Território das Ilhas Adjacentes que esteve em vigor até ao dia 25 de Abril de 1974.
A necessidade da organização de um efectivo poder político próprio à escala regional (e não distrital ou concelhia) foi defendida nos anos anteriores ao 25 de Abril em vários momentos e por vários sectores políticos. Lembro a “Declaração de Ponta Delgada”, redigida pelo então Capitão Ernesto Melo Antunes para a farsa eleitoral de Outubro de 1969. Nesse texto, que se iria revelar inspirador do “Programa do MFA”, coube, entre outros temas que foram tratados pela primeira vez pela Oposição Democrática portuguesa, a par da resolução da questão colonial, uma referência à autonomia política dos Açores. O tema animou também uma auspiciosa polémica nas páginas do jornal Correio dos Açores, sob o lema de “Autonomia e Regionalismo”. Ainda antes, no início dos anos 60, nas chamadas “Semanas de Estudos”, que reuniram elites intelectuais com formação diversa, foi particularmente enfatizada a ponderação da Região como um todo e a necessidade de corresponder para esse alcance com políticas de planeamento e aplicação regional.
Chegámos, pois, ao 25 de Abril, sem Regiões, sem Poder, sem Democracia e longe do provimento das necessidades e dos direitos mais elementares. Com todos os acidentes que marcaram os dois primeiros anos da Revolução, esse percurso teve o enorme saldo positivo de nele terem sido conquistados a Democracia, o autogoverno e o reconhecimento de novas individualidades institucionais, e convocada a necessidade de alterar o rumo económico e a situação social. É também a primeira vez que os conceitos de Região e de Autonomia se conjugam no direito positivo, potenciando-se mutuamente.
Para além dos partidos políticos constituídos à escala nacional, que estruturaram as suas representações – “a par desse proselitismo de origem continental”, como diria o investigador Teixeira Dias – despontam movimentos localistas e regionalistas na Madeira e nos Açores. Relevam, neste último caso, já em Dezembro de 1974, o Movimento para a Autodeterminação do Povo Açoriano (MAPA) e, posteriormente, a Frente de Libertação dos Açores (FLA), (FLAMA na Madeira), os quais, embora tendo muitos membros influentes comuns definiam-se com objectivos dissemelhantes: o primeiro ainda no campo de uma ampla Autonomia e a segunda já na reivindicação da independência. Atente-se que alguns membros da MAPA e da FLA também tinham estado associados à oposição à Ditadura. Proliferaram outros pequenos movimentos conhecidos por siglas como o MATA ou a FRIA, ou, em oposição àqueles, a LAPA ou a FAF.
Não obstante a Constituição impedir a existência de partidos regionais, a verdade é que, de facto, embora não de jure, os principais partidos, em ambas as regiões reforçaram, desde a sua formação até hoje, essa configuração política e competencial própria. É bom que se diga, também, que isso tem sido muito positivo para a integração do acervo político regional no contexto nacional.
O PPD foi o primeiro partido a estruturar-se, aproveitando, em muito, o ascendente social e a rápida reabilitação política dos seus dinamizadores locais, ligados, em alguns casos, ao partido único da Ditadura e vencendo destacadamente as primeiras eleições. Os restantes partidos foram sendo organizados com dificuldades, tanto mais que nem sequer puderam beneficiar da visibilidade que a televisão poderia favorecer, pois esta só chegou às ilhas numa primeira emissão de escassas horas em 10 de Agosto de 1975. O radicalismo de alguns, inclusive de alguns sectores do PS, também não os terá ajudado.
Nos casos do PPD e do PS, a matriz autonómica esteve associada aos seus momentos fundacionais quer na Madeira quer nos Açores. O PPD apresenta as Bases do Estatuto Político-Administrativo dos Açores em Novembro de 1974, discutindo o tema no seu primeiro Congresso Nacional, e o PS faz o mesmo um mês depois, no seu Congresso em Lisboa, inserindo o tema no Programa do partido que então aprovou. Porém, Jaime Gama, com o apadrinhamento público de Salgado Zenha, defendera meses antes o modelo de governo regional. Aliás, Zenha, posteriormente, mostrou-se mesmo defensor da existência de partidos regionais.
O conceito de Região é igualmente reconhecido, no início de 1975, antes da eleição da Assembleia Constituinte, pela chamada I Reunião Insular, realizada em Angra do Heroísmo, por iniciativa dos governadores dos distritos autónomos de Angra e de Ponta Delgada, numa espécie de obituário das suas próprias funções, em que participaram representantes madeirenses.
De permeio são apresentadas e discutidas várias propostas de um novo estatuto político para a Região, do chamado Grupo dos Onze à versão da Comissão dos Nove e da Junta Regional entretanto empossada.
Apesar da vitória do PPD nos Açores e na Madeira e da vitória do PS a nível nacional, as populações de ambas as regiões temeram a evolução do país com o acréscimo da influência comunista. Também por isso, mas não só, o separatismo ganhou força em alguns meios face à defesa da autonomia e até a tolerância em alguns protagonistas nacionais e internacionais. Tal como acontecia um pouco por todo o país, os actos de violência contra pessoas e bens e de perturbação da ordem pública tornaram-se frequentes, com o adicional local do confronto entre os mais, os muito mais, os menos e os muito menos autonomistas. Isso “proporcionava” que um estudante que fosse agredido, por exemplo, pela União dos Estudantes Comunistas de manhã, em Lisboa, pudesse sê-lo, de novo, mas por razões opostas, no mesmo dia à noite, em Ponta Delgada.
Jaime Gama, no parlamento nacional, em Outubro de 1975, falava desses casos atribuindo-os a “reaccionários” e “meninos bem…”, exigindo que as autoridades civis e militares tomassem uma posição clara sobre os Açores e não abandonassem “as populações insulares às mãos de uma minoria de aventureiros e exploradores”. A conduta das forças e serviços de segurança existentes nos Açores era, de facto, muito instável (para não utilizar outra expressão).
Mota Pinto, reconhecendo embora que as eclosões separatistas ganharam raízes no abandono do centralismo, alertou para o fôlego que tais ideias ganhavam na população insular “como fuga ao risco da ditadura comunista em Portugal”.
Noutro âmbito, é conhecida a tendência, em Setembro de 1975, do presidente norte-americano Gerald Ford, para apoiar a independência dos Açores caso a “via moderada” do MFA não vencesse na disputa pela liderança de Portugal. De resto, como escreveu Reis Leite, esses entusiasmos separatistas, ainda que fugazes, ancoraram-se “quase sempre no sonho de encontrarem proteccionismo na potência marítima. No séc. XIX, o Império Britânico, no séc. XX, a área de influência dos Estados Unidos”. Sempre se soube de contactos e reuniões havidas no exterior e de envolvimentos de entidades e pessoas estranhas ao País (americanas, europeias, árabes e africanas), embora a níveis como de Helmut Schmidt e do próprio embaixador americano Frank Carlucci as garantias de não envolvimento fossem repetidas.
São abundantes as referências publicadas sobre esses e outros envolvimentos que, digamos assim, prescreveram politicamente mas reescreveram-se na História. Não deixa de ser curioso que Carlucci, apoiando a solução autonómica, tenha estado presente na posse da Assembleia Regional dos Açores ainda antes do Presidente Eanes estar presente na sessão solene de abertura dois meses depois.
Por outro lado, é sabido que, tal como já tinha sido equacionado em caso de invasão da Península Ibérica na II Guerra Mundial, também face à eventual tomada comunista em 1975 alguns líderes democráticos consideraram planos de transferência de órgãos de soberania para os Açores.
O impacto da que ficou conhecida como a “manifestação do 6 de Junho”, em 1975 – ainda nos ecos dos processos de descolonização –, foi muito importante para o alarme político que precipitou a tomada de decisões e alteração de condutas por parte dos poderes centrais do Estado, que se mostravam pouco atentos às necessidades a prover nos Açores e na Madeira e ainda menos empenhados na consagração dos regimes autonómicos. A manifestação, alegadamente independentista, e algumas outras acções simultâneas são, afinal, facilmente desmobilizadas pelo anúncio da substituição do governador civil associado aos sectores comunistas e de medidas relativas à ultrapassagem de constrangimentos económicos em áreas muito específicas. Porém, o mesmo general que assina o comunicado com as decisões anuncia, pouco tempo depois, a prisão de um grupo de pessoas associado ao movimento popular, renovando, assim, um factor de perturbação.
Muitíssimo relevantes foram, também, as pressões dos meios políticos insulares autonomistas, da esquerda à direita, que não estiveram associados à manifestação – alguns estiveram na contra-manifestação seguinte de 17 de Junho –, expondo a sua convicção, junto dos principais decisores nacionais, de que a alternativa à violência e ao separatismo, bem como a única solução de unidade nacional, era a de uma autonomia rápida e autêntica. O sobressalto provocado na classe política nacional foi tremendo. Bem se pode dizer que a consagração das Autonomias foi, em boa parte, conseguida pelo “cerco virtual à Constituinte” perpetrado por populações distantes mas determinadas.
O entusiasmo que se viveu nas ilhas após o 25 de Abril também deve ser compreendido à luz da esperança em pôr fim ao definhamento económico e social que então se vivia. O sentido revolucionário era o de buscar solidariedade e fazer justiça.
No pós-25 de Abril, como ainda hoje, muitas das resistências dos decisores políticos e de largos sectores da população às concessões autonómicas e à assistência face aos custos da insularidade advieram (e advêm) não só de uma proverbial e preconceituosa desconfiança centrifuga como de um generalizado desconhecimento sobre as condições do Portugal Atlântico. Já em 1924 fora organizada, justamente por essas razões, a que ficou conhecida como a “visita dos intelectuais do Continente”. Também nessa dimensão, o 25 de Abril promoveu uma autêntica revisitação – uma revolução contra o desconhecimento da realidade –, que foi decisiva para a compreensão dos portugueses do país uno mas dissemelhante.
Até ao 25 de Abril, o poder central preocupou-se mais – ainda que mal – com aspectos de coesão social associados à política colonial africana do que às chamadas ilhas adjacentes, onde os sinais de descontentamento não configuravam ameaças de desagregação territorial. A pouca atenção dada aos Açores prendia-se apenas com a necessidade de manter as aparências numa Região que contribuía para a excepção ao seu isolamento internacional como um posto de alto valor geoestratégico.
Em 1974, os arquipélagos eram as regiões mais atrasadas de um País que já era dos mais atrasados da Europa. Os Açores tinham uma taxa de mortalidade infantil de quase 50 por mil, uma taxa de frequência do ensino preparatório/secundário irrisória de 20%, não havia ensino superior em ambos os arquipélagos, só 1/4 das habitações tinha luz, água canalizada e casa de banho e o número de médicos por habitante era quatro vezes menos do que no Continente com a agravante da descontinuidade territorial. Os Açores tinham pouco mais de 40% da média do PIB nacional, o que contrasta bem com os quase 95% actuais.
Não percebo, pois, como os milagreiros da ciência estatística vendem a ideia de um Portugal actual mais pobre, embora, diga-se, o actual Governo da República tudo faça para que assim aconteça.
A Madeira, por sua vez, não estava melhor. Isso mesmo denunciava o então deputado Emanuel Rodrigues, eleito pelo Distrito do Funchal, salientando, com concordância geral, a “miserável e dramática situação …” e as inúmeras famílias que viviam "em furnas cavadas nas rochas”.
Podemos, pois, dizer que, no período de vida e de phasing out do PREC, quatro factores determinaram a evolução posterior, contribuindo para o desarme político e social do separatismo: a constituição, em Agosto de 1975, da Junta Administrativa e de Desenvolvimento Regional em cada uma das regiões, com uma representação dos dois principais partidos; depois, a queda do gonçalvismo, com as suas consequências internas e externas; também os sinais, ainda que ténues, de diligências de resolução de alguns dos problemas sociais e económicos mais aflitivos; e, simultaneamente, os avanços positivos dos trabalhos constituintes – onde se destacaram, pela parte açoriana, os deputados Mota Amaral, Natalino Viveiros e Jaime Gama.
A este último propósito, saliente-se que tais avanços aconteceram sempre com reservas dos partidos parlamentares à esquerda do PS, mais frequentemente expressas por Vital Moreira, que se opôs à formação de uma comissão parlamentar só para a discussão do Título constitucional respeitante às autonomias regionais.
Dois anos depois do 25 de Abril, a seguir à proclamação da nova Constituição da República – a menos centralizadora de sempre – são também publicados os estatutos provisórios dos Açores e da Madeira. Os definitivos só surgiriam, respectivamente, em 1980 e 1991.
Finalizando, refira-se que a tensão e as dinâmicas de conflito e de ajustamento resultantes da decisão de instituir regiões autónomas não terminaram e não terminarão, pois a concertação institucional implica esse balanceamento tal como ocorre com a concertação social. Em todo o caso, estes 40 anos mostraram que essas dinâmicas tenderam para o reforço da solidariedade nacional e para a consolidação do “Estado Regional Parcial” (como diria Jorge Miranda), e não para a desarticulação do Estado.
Destaco, sumariando, seis conclusões:
1ª– ao invés do regionalismo no Continente, as autonomias insulares eram aspirações históricas, fortalecidas pelos condicionamentos geográficos e as desatenções centralistas;
2ª– as autonomias regionais não se imaginaram na Democracia mas sim na luta por ela;
3ª– a Revolução, apreendendo esses movimentos e sinalizações, representou para as ilhas uma mudança extraordinária, assegurando a coesão territorial e exponenciando os efeitos positivos futuros da integração europeia;
4ª – as movimentações separatistas nunca tiveram uma consistência social e cultural, sendo estimuladas no PREC pela ameaça comunista e invertidas pela evolução política nacional contrária;
5ª– as autonomias constituíram-se como uma demonstração de maturidade e um motor de busca de empreendedorismo, de solidariedade e de equidade, concitando uma larga aceitação nacional;
6º– no instituto constitucional das autonomias regionais, que conserva a marca dominante da Constituição de 76, prevaleceu o conceito de uma autonomia política e evolutiva; essa dimensão evolutiva é bem patente em actos posteriores reconfiguradores, como na aprovação de uma Lei das Finanças das Regiões Autónomas em 1998, cuja estabilidade tem sido várias vezes posta em causa, e nas sucessivas revisões estatutárias que, sobretudo em 2009 acrescentaram direitos e garantias à Autonomia e ao seu “adquirido”.
Termino.
Estou convencido de que as autonomias do poder local (ainda incompleta) e do poder regional são parte do código genético da nossa democracia. Nessa conexão têm um elevado potencial de irreversibilidade, mas a esse propósito gosto de lembrar que só ganhamos aquilo que conquistamos e só preservamos aquilo por que continuamos a lutar.
Esse é, de resto, um princípio muito recomendável na actual situação portuguesa, em que, de forma peculiar, se advoga, ao mesmo tempo, menos Estado e menos descentralização. É também uma exigência cautelar, pois nem o actual Presidente da República nem o actual Primeiro-ministro são favoráveis a qualquer atrevimento descentralizador ou a uma gestão participada dos assuntos e do “sentido de Estado”, que seriam, afinal, opções e inspirações de Abril.
Muito obrigado.
Carlos César
24 de Abril, 40 anos depois