Intervenção de Vasco Cordeiro na cidade da Horta, proferida na Sessão Solene Comemorativa do 40.º aniversário da Autonomia dos Açores, na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores:
"Reunimo-nos hoje, aqui, para evocar a passagem de 40 anos sobre a data em que, formalmente, iniciou funções em plenitude a então Assembleia Regional dos Açores e o passo que isso significou para o processo de concretização orgânica da Autonomia Político-Administrativa que havia sido instituída na Constituição promulgada a 2 de abril de 1976.
Evocando a data de instalação do Parlamento da I Legislatura, fazemos confluir para este momento a comemoração do 40.º aniversário da instauração deste modelo de descentralização política e administrativa. Este é, pois, um ato de memória e de respeito pelo labor incansável do Povo Açoriano em prol da Liberdade, da Democracia e do desenvolvimento da nossa Terra.
Memória em relação, não só aos que há 40 anos se lançaram na aventura de delinear e consubstanciar a Autonomia, como também em relação àqueles que, ao longo destes 40 anos, contribuíram para que ela passasse do sonho à realidade, sobretudo naqueles objetivos que lhe foram fixados de promoção do desenvolvimento e do progresso e bem estar económico e social de todas e cada uma das ilhas dos Açores.
Saúdo, por isso, de forma expressa os antigos Presidentes do Parlamento dos Açores, Álvaro Monjardino, José Guilherme Reis Leite, Humberto de Melo, Dionísio Sousa, Fernando Meneses e Francisco Coelho, e saúdo, igualmente, os antigos Presidentes do Governo, João Bosco Mota Amaral e Carlos César.
De forma sentida e respeitosa, evoco a memória de Alberto Romão Madruga da Costa, que, quer como Presidente do Parlamento, quer como Presidente do Governo, também deixou uma marca indelével na Autonomia dos Açores. Por vosso intermédio, saúdo e relembro todos aqueles que sob a vossa liderança serviram, defenderam e promoveram a nossa Autonomia e os interesses do Povo Açoriano.
A Autonomia dos Açores, quatro décadas passadas sobre a sua consagração constitucional e institucionalização efetiva, veio a revelar-se, não só como uma das mais notáveis histórias de sucesso da Democracia portuguesa, como, para além disso, o período de maior desenvolvimento, de maior progresso e de maior e mais substantiva coesão de toda a nossa história. E, se o momento é de memória, não pode deixar de ser também de prospetiva, de futuro e de ambição. Aliás, essa será, porventura, a melhor forma de homenagear aqueles que, em 1976, também de olhos postos no futuro, abraçaram esse desafio de dar corpo e substância à Autonomia. Com esse espírito, e animados por essa ambição, falemos, pois, do futuro.
Mesmo deixando para outro tempo e outros espaços a apresentação de propostas e de programas eleitorais que a dinâmica e a vida democrática da nossa Autonomia levaram a que coincidissem temporalmente com este momento, por entendermos que assim se serve e honra melhor esta sessão solene, há, ainda assim, aspetos, porventura mais estruturantes ou de modelo, que julgamos úteis abordar. Falamos, em concreto, daqueles que consideramos serem os dois riscos e os três desafios que a Autonomia presente enfrenta e, julgamos nós, enfrentará, ainda mais, no futuro próximo.
O primeiro desses riscos é o de se diluir a importância da nossa Autonomia como elemento essencial, como elemento vital, para o autogoverno da nossa Região e para o caminho de progresso e de desenvolvimento que, aos mais variados níveis, temos trilhado e que, estou certo, todos queremos continuar a trilhar. A primeira forma como esse risco se materializa é a surpreendente afirmação que, tantas vezes e de diversas proveniências, temos visto repetida, de que a Autonomia falhou nos seus objetivos, nos seus propósitos e nos seus fins.
Não está em causa, como nunca poderia estar, nem a liberdade de discordância ou de crítica quanto aos benefícios de determinadas soluções, quanto ao mérito de um determinado caminho ou quanto às vantagens de uma política, nem o respeito que essas opiniões e críticas devem merecer. Não está em causa a capacidade e o poder de defender políticas, soluções ou medidas diferentes nos seus objetivos, nos seus mecanismos ou na sua abrangência.
Não está em causa, sequer, a liberdade de até discordar desse modelo de autogoverno, considerando-o aquém do desejável. A Autonomia está geneticamente, está umbilicalmente ligada à Democracia e à Liberdade, e nunca poderia comprimi-las ou negá-las, sob pena de se negar a si própria.Todos esses aspetos e todos esses exercícios podem, e devem, ser feitos, exatamente no exercício dessa Autonomia política que a Constituição da República nos garante e que encontra, nesta Casa, o espaço privilegiado para o seu debate e cotejo.
Mas interessa que não confundamos - e o risco reside exatamente aqui - aquelas que são as insuficiências, as omissões ou os erros no exercício desse poder de propor soluções ou de apresentar e concretizar caminhos, com a estrutura e o enquadramento político e institucional que nos garante sermos nós, Açorianos, todos nós, a ter esse poder, essa responsabilidade e, - porque não dizê-lo?-, essa obrigação.
Pormos em causa o mérito da Autonomia que nos permite decidir o nosso destino a pretexto de, eventualmente, fazermos uma análise crítica dos resultados das políticas que, ao abrigo dessa Autonomia, foram democraticamente sufragadas e implementadas, é, receio bem, o caminho mais fácil para que, em última instância, fiquemos sem essas políticas e sem a Autonomia para definir alternativas.
A segunda forma como esse risco de diluição da importância da Autonomia nos surge é através de posições que, vindas de dentro e de fora, pretendem afirmar que, bastaria termos os recursos, seja da Europa, seja do País, para que hoje estivéssemos, sensivelmente, com o mesmo nível de desenvolvimento.
No fundo, para aqueles que assim pensam, a Autonomia, se é importante, não o é mais do que os recursos financeiros que nos chegam da República ou da União Europeia. Interessa que, também aqui, a falácia do raciocínio não passe, pelo menos, sem o devido alerta, sinalizando a história como o grande e definitivo desmentido a esse tipo de afirmações. E a constatação que a luta dos Açorianos pela capacidade de se autogovernarem não foi, nem é, uma luta que vise, ou tenha visado, vantagens financeiras da República ou da União Europeia. Fazê-lo é, seguramente, o primeiro passo para essa desmistificação.
Foi por posições como essas, continua a ser ainda hoje, uma luta contra o preconceito, a ignorância, a desconfiança e até o desprezo com que, ao longo de cerca de 500 anos - não 40, mas 500 anos - não raras vezes, os Açores e os Açorianos foram tratados. Sejamos, então, claros: foi e é sempre a Autonomia Regional que fez e faz a diferença!
A Autonomia fez e faz a diferença no acesso dos Açorianos à Saúde quando, em 1974, as principais instalações de saúde apenas existiam nas duas maiores ilhas e, hoje, temos três hospitais, 18 centros de saúde e postos de saúde em muitas e muitas freguesias da nossa Região.
A Autonomia fez e faz a diferença no desenvolvimento económico das nossas ilhas quando, em 1974, o Produto Interno Bruto per capita da Região era de apenas 45% do PIB nacional e hoje os dados oficiais da União Europeia confirmam que é cerca de 91% da média nacional.
A Autonomia fez e faz a diferença nas acessibilidades aéreas e marítimas quando, em 1974, só duas ilhas tinham portos artificiais e apenas cinco tinham aeroportos. Hoje, todas as ilhas têm portos e aeroportos que são peças fundamentais nas acessibilidades marítimas e aéreas.
Mas é a mesma Autonomia que fez e faz a diferença quando, face a opções políticas que foram seguidas na República no passado recente, e que se destacaram pelo aumento da carga fiscal, cortes de apoios sociais e redução na despesa do Estado, nos Açores, no exercício da nossa Autonomia, apenas no ano 2015, garantimos mais de 250 milhões de euros de apoios e benefícios às famílias e às empresas açorianas, os quais elas não teriam se vivessem ou estivessem sedeadas na Região Autónoma da Madeira ou no Continente. Aqui incluiu-se, gostaria de realçá-lo, a criação e o reforço das remunerações compensatória e complementar destinadas aos funcionários públicos regionais.
É a mesma Autonomia que fez e faz a diferença - e interessa referi-lo também para informação dos que tanto se dedicam a saber quem gasta o quê - na gestão das nossas finanças públicas, garantindo que, por exemplo, em 2015, o défice e a dívida pública da Região Autónoma dos Açores significassem, respetivamente, 0,02% e 38% do PIB regional, quando, no País, esses indicadores foram, no caso do défice, 4,4% e, no caso da dívida pública, 138%.
Mas, no final, é a Autonomia que fez e faz a diferença porque é ela a diferença entre ser o Povo Açoriano ou serem outros a decidirem sobre o nosso futuro; ela faz a diferença porque determina que sejam os Açorianos, que seja o Povo Açoriano, e não outros, a ajuizar do mérito ou demérito dos projetos políticos sobre o seu destino coletivo, decidindo através do seu voto nas eleições legislativas regionais, decidindo através dos seus representantes eleitos no seu Parlamento, decidindo através do seu Governo.
O segundo risco prende-se com a perda de referências sobre esse trajeto de autogoverno, assumindo-o apenas como um qualquer plano de fomento em que tudo se resuma a mais ou menos infraestruturas, a mais ou menos investimento em equipamentos públicos. Fundamental, a este propósito, é termos e fomentarmos a consciência que, mesmo a propósito da Autonomia, a nossa história não começou apenas em 1976. Ou apenas em 1895.
Julgamos, por isso, essencial cultivar o conhecimento mas, mais do que o conhecimento, estimular a consciência que, no percurso que temos feito nestas ilhas, esta experiência de autogoverno é, apenas, um breve momento. E, paradoxalmente, ao mesmo tempo que esse exercício poderá relativizar o tempo de existência desse modelo de descentralização que conquistámos, ele permitirá, igualmente, salientar as diferenças entre o que fomos e o que somos, como chegamos e porque chegamos até aqui.
É por isso que, a par de outras iniciativas, algumas delas desenvolvidas e aprovadas por esta Assembleia, julgamos poder vir a ser de grande importância e utilidade os projetos designados “Autonomia Digital” e “Casa da Autonomia”, os quais, extravasando quaisquer fronteiras físicas de ilhas ou locais, constituirão um amplo espaço de conhecimento, de memória e de identidade do Povo Açoriano e da nossa Região.
Promover esse conhecimento, acarinhar essa memória e, pela ação combinada desses dois elementos, estimular essa identidade é, sem sombra de dúvida, uma boa forma de também reforçar a ligação dos Açorianos com as suas conquistas, entre as quais se conta a Autonomia dos Açores. E se esses são, numa análise muito sucinta, alguns dos riscos, convém, igualmente, estarmos despertos para os desafios que se perfilam no horizonte.
Em primeiro lugar, uma referência ao desafio de levar a Autonomia a intervir em novas áreas da nossa vivência coletiva, eminentemente políticas e não apenas administrativas. Em abono da verdade, refira-se que o Parlamento dos Açores, em boa hora, já iniciou esta abordagem, nomeadamente quando, na última revisão do Estatuto Político-Administrativo, em 2008, abandonou definitivamente a perspetiva desse ser um documento meramente organizador da arquitetura institucional autonómica para passar a ser um documento que, em si mesmo, carrega a carga política dos princípios e objetivos que podem, e devem, estar associados à Autonomia.
Mas acreditamos que é possível ir mais além, num processo para o qual a XI Legislatura que se iniciará este ano trará legitimidade reforçada e contributos acrescidos. Áreas como a qualidade da Democracia, a melhoria dos mecanismos de participação política, o reforço dos instrumentos de participação cidadã ou, até mesmo, os mecanismos de fiscalização e accountability a partir do Parlamento, ou do próprio Governo não podem estar fora do âmbito de uma Autonomia moderna e devem, da parte dela, merecer uma atenção acrescida e substantiva.
Um segundo desafio tem a ver com vencer-se o desconhecimento e, em alguns casos, o preconceito que ainda perduram relativamente às autonomias regionais, atravessando os diversos espaços político-institucionais do nosso País. Acreditamos ser necessário desenvolver, também a partir da República, uma verdadeira pedagogia das autonomias regionais, combatendo, por via do esclarecimento, uma visão deturpada das mesmas, quiçá, por muitas das vezes se valorizar o acessório mediaticamente mais apelativo do que o essencial substantivamente mais meritório. A presença de Vossa Excelência nesta Sessão, Senhor Presidente da Assembleia da República, é um bom indicador e um fator de ânimo para os que entendem ser necessário assumir, ao mais alto nível na República, esse trabalho e esse esforço que permita, no fundo, compatibilizar as experiências autonómicas dos Açores e da Madeira com o sentir da generalidade da sociedade portuguesa.
Por último, o desafio de levar a uma maior interação e colaboração entre o Estado e as autonomias regionais em áreas que, das relações externas às áreas tradicionalmente associadas a funções de soberania, podem ter nessa relação um fator acrescido de eficiência e produtividade com benefício mútuo. Há, efetivamente, um potencial imenso nas relações políticas e afetivas das autonomias regionais com entidades infranacionais, e até mesmo de âmbito regional europeu, e na sua capacidade de serem interlocutores dos interesses do País nessas instâncias. Aproveitá-lo e desenvolvê-lo é algo que, da parte do Estado, constitui um caminho que ainda não se iniciou de forma coerente e efetiva.
Concluo com uma palavra para aqueles que são a razão primeira e única de estarmos aqui hoje – as Açorianas e os Açorianos, o Povo Açoriano. Aqueles que, do Corvo a Santa Maria, lutam para que os Açores sejam o melhor sítio do mundo para se viver e para construir um futuro melhor para os seus filhos e para os seus netos.
Lutam para que continuemos juntos esta magnífica jornada coletiva, este caminho de luta conjunta que nos trouxe até aqui, mas que não termina, nem terminará, enquanto houver um Açoriano na rua, no trabalho, nas empresas, na Assembleia ou no Governo, a acreditar e a lutar para que “A Livre Administração dos Açores pelos Açorianos” seja uma realidade, seja uma verdadeira ambição em benefício de todos nós, dos Açores e de Portugal.
Hoje, mais do que nunca, ao olharmos para trás, para estes 40 anos de conquistas, de trabalho, de resiliência e tenacidade, e ao vislumbrarmos no horizonte os desafios que, como Povo, temos pela frente, estou certo que as Açorianas e os Açorianos, das nossas nove ilhas e também aqueles que se encontram em várias partes do mundo, sentem de modo particularmente intenso, as felizes palavras que a poeta imortalizou e que hoje, neste dia de celebração, ganham redobrado sentido: “há um orgulho imenso na palavra Açor”.
E, recorrendo às palavras do primeiro Presidente deste Parlamento, proferidas há, exatamente, 40 anos atrás, continuemos, pois, esta nobre missão de, juntos, como Povo “altivo na sua modéstia, brioso na sua humildade, sensível na sua capacidade de sofrer, trabalhador no seu “spleen”, português no seu açorianismo”, cumprirmos e escrevermos a nossa história e o nosso destino, disse."