Opinião

Salvar vidas pela hora da morte

I. O Estado Português esteve refém de uma farmacêutica durante semanas. Dividido entre a obrigação de fornecer os melhores e mais eficazes cuidados de saúde aos cidadãos e a necessidade de zelar pelos dinheiros públicos, o Ministro da Saúde decidiu esticar a corda que tinha na outra extremidade um laboratório farmacêutico monopolista no fornecimento dos fármacos de última geração para os doentes de Hepatite C. Por se encontrar em posição negocial dominante, o laboratório Gilead Sciences decidiu cobrar 48.000€ por um tratamento baseado num medicamento que custará apenas 100€ a produzir, segundo as informações conhecidas. A taxa de sucesso do fármaco é de 90%. Se estivéssemos a falar da melhor batata frita de pacote, diríamos que se tratava do mercado a funcionar e que há sempre um pacote de batatas mais barato. Mas o assunto aqui é a vida e a morte de um conjunto de pessoas que está à mercê de uma empresa multinacional, monopolista e com práticas predatórias. Por isso, neste caso, não é aceitável que o Governo ponha no mesmo prato da balança os direitos do cidadão doente e os direitos do cidadão contribuinte, a legítima necessidade e o dinheiro, sempre o dinheiro. II. A designação técnica consensualizada é “mercantilização da Saúde”, mas no fundo do que se trata mesmo é da comercialização da doença. O Prémio Nobel da Medicina Richard J. Roberts, bioquímico e biólogo molecular, explicou a questão com a maior crueza, em entrevista ao La Vanguardia: “é habitual que as farmacêuticas estejam interessadas em linhas de investigação não para curar, mas sim para tornar crónicas as doenças com medicamentos cronificadores, muito mais rentáveis que os que curam de uma vez por todas”. E, perante o incómodo do jornalista, que referiu ser aquela uma acusação grave, acrescentou: “as empresas farmacêuticas muitas vezes não estão tão interessadas em curar as pessoas como em sacar-lhes dinheiro e, por isso, a investigação, de repente, é desviada para a descoberta de medicamentos que não curam totalmente, mas que tornam crónica a doença e fazem sentir uma melhoria que desaparece quando se deixa de tomar a medicação”. E, para que não restem dúvidas, cita como exemplo o caso da tuberculose, que esteve quase erradicada do mundo ocidental, mas que, por resistência aos mesmos antibióticos de sempre, está hoje a ressurgir e a matar de novo. III. Para Jones, que sendo inglês trabalha nos Estados Unidos, a solução para este terrível problema do capitalismo farmacêutico passa pela intervenção do Estado ao nível da investigação. Ou seja, o Estado não deve colocar-se na posição de um impreparado comprador de remédios, mas deve antes fomentar uma certa investigação biomédica e desencorajar outra, de modo a equilibrar os efeitos perversos da indústria de vender medicamentos. O que for prioritário para os cidadãos deve ser incentivado pelo Estado; o que for apenas para gerar lucro às empresas farmacêuticas, sem o correspondente benefício social, deve ser combatido pelo Estado. Um Estado que assim proceda fica certamente menos exposto aos ditames financeiros do capital farmacêutico e às oscilações do mercado, e cumpre de forma muito mais eficaz o seu dever de proteção dos doentes e necessitados. Em vez de comprar medicamentos a preços exorbitantes, deve antes investir em investigação desinteressada comercialmente. IV. Curiosamente, o mesmo Governo que regateou o preço do medicamento de combate à Hepatite C, deixando os doentes em risco de vida, reduziu, no Orçamento de 2015, as verbas para o Laboratório Nacional de Saúde – Ricardo Jorge. Não quer investir mas também não quer gastar. Diz o Senhor Primeiro-Ministro que salvar vidas anda pela hora da morte