Opinião

O arco que é um muro

I. O arco é um muro. O dito “arco da governação” não é, ao contrário do que se tem vindo a fazer crer, um conceito de inclusão dos partidos com dimensão e vocação de poder. É antes, e sobretudo, um conceito de exclusão de uma eventual solução governativa dos partidos mais alinhados à Esquerda. É apenas natural que tenha sido Cavaco Silva a dizê-lo. Naquele seu assustador primarismo ideológico, disse o que, volvidos 40 anos de democracia, muitos continuam a pensar mas não têm coragem de tornar público. Quando, no discurso de indigitação de Passos Coelho, o Presidente da República afirmou “este é o pior momento para alterar radicalmente os fundamentos do nosso regime democrático”, ergueu claramente o muro que separa os que alicerçam o sistema tal como ele o concebe dos que significam a sua radical transformação. Para Cavaco Silva, a justificação está no alinhamento de Portugal em termos de política externa. O Bloco e o PCP não são europeístas, não querem o Tratado Orçamental e renegam a NATO, logo não podem fazer parte da governação do país. Admitir como boa esta argumentação implicaria, desde logo, presumir que o voto de um milhão de portugueses só tem validade como forma de protesto inconsequente e nunca como parte de uma solução de governo. Mas, mais grave que isso, pressupõe também que escolha, diálogo e conciliação – esses sim os verdadeiros fundamentos de qualquer sistema democrático – não valem para todos e em qualquer circunstância. II. Hoje parece-nos pré-histórico, mas houve um tempo em que a Direita portuguesa estava dividida de forma aparentemente irreconciliável. O PSD, mais ao centro do que hoje, tinha uma pequena franja liberal, enquanto o CDS, muito mais eurocético do que é hoje, se assumia como defensor da “vocação atlântica dos Descobridores” e da antiguidade das fronteiras nacionais. Em 1992, por exemplo, Paulo Portas, então apenas ideólogo de serviço, escrevia no semanário Independente “não há nação europeia, nem nunca haverá”, alertando para a “germanização da Europa”, que descambaria numa “crise social sem precedentes”. Ao pé do PSD social-democrata e europeísta de primeira hora, o CDS nacionalista, conservador e eurocético parecia um perigoso e radical adversário dos “fundamentos do regime”. Mas a união consumou-se. O CDS acrescentou o PP e o (en)canto do poder fez o resto. Portas demonstrou ao país que nada é irrevogável e que o que era sagrado era-o apenas na medida em que conferia mais valor político a um pequeno partido de contestação. Havia um desígnio maior: o poder. Hoje, ninguém se preocupa com as origens radicais do CDS-PP e, embora seja relativamente evidente que o partido foi engolido pelo PSD liberal de Passos Coelho, não há quem conteste a orientação estratégica dos últimos anos. O cimento da união não é ideológico, é pragmático. Sem casamento não há poder. III. Além de não reconhecer aos partidos mais à esquerda do espetro político o direito à mesma incongruência do CDS-PP, o Presidente da República deixou claro que partidos como o Bloco e o PCP ornamentam, abrilhantam, dão aquele quê de esoterismo e excentricidade, mas não são para brincar aos governos. O que Cavaco Silva disse significaria que o trajeto que a Direita cumpriu para se unir – e que inclusivamente obrigou Cavaco a engolir um sapo do tamanho de Paulo Portas – está vedado à Esquerda em nome da solidez estrutural do próprio sistema democrático. Eu, pelo contrário, acho que em Democracia todos os votos contam, todos têm consequência na exata proporção do seu peso relativo e cada um deles representa uma voz. Neste sentido, a solidez da Democracia mede-se muito mais pelas pontes que se conseguem estabelecer do que pelos muros que alguns, por razões pouco democráticas, teimam em querer erguer.