no passado dia 9 de julho, sábado, de manhã, fomos com os miúdos à cidade, para assistirmos a algumas das performances da segunda edição do “rua direita”, um projecto de teatro de rua dos cães do mar que pretende aliar a história da rua direita e dos seus comerciantes à cultura da sua cidade e, consequentemente, da ilha terceira, através do teatro.
espaços como o pátio da alfândega, o basílio simões ou o agora verde maçã são emblemáticos da cidade de angra do heroísmo, tal qual são também as suas histórias e memórias. estas, que importam para aqui convocar, em elementos ficcionais de uma comunidade de mais de meio século de história, e um repositório sempiterno de narrativas.
e é o que faz o “rua direita”. este ano, o mateus e o dinis puderam escutar a declamação musicada por derek nisbet e cantada por edmir ribeiro, rapper cabo-verdiano radicado nos açores, em histórias de além-mar, de ilhas e colónias, submissão ao reino e à capital, escravos de um país que não os reconhece como seus e da luta pela identidade.
um pouco mais acima, na esquina com a travessa de são joão, o ancião elias, auxiliado pelo seu fiel companheiro, ricardo ávila, convoca memórias do tempo dos passepartouts, das fotografias à la minute, e das memórias físicas dos espaços por onde passávamos, obliterados que foram por esta era digital, postável e editável com um toque de dedos, sem a magia da analogia e do simulacro do real.
mais à frente, no basílio simões, a brasileira que não samba recolhe as histórias dos seus clientes, interpretada por bianca mendes, encarnando uma personagem assombrada pelo espírito do antigo proprietário, que se manifesta através da velha telefonia do estabelecimento, o poder redentor das histórias como alento no vazio da eternidade.
por vezes, no fundo, tudo o que queremos é um pouco de calor humano, de uma voz que nos acompanhe e nos faça sentir que está tudo bem. que ficará tudo bem, no fim.
estes foram algumas das cenas da segunda edição do “rua direita”, intitulado “a saudade e a folia” e que decorreu de 7 a 9 e de 14 a 16 de julho deste ano. para além destes: instalação sonora de derek nisbet, na loja das tintas do basílio simões; a instalação “câmara clara: a relação emocional entre a memória e a imaginação”, da laura brasil, na expert; o espectáculo “varandas”; a performance “uma lembrança de água”, do coreógrafo e bailarino romulus neagu, com música de derek nisbet; a performance de dança da diana rosa, “medidas de utopia”, com apoio e colaboração de nomes como sílvia teixeira, sílvia fagundes, peter cann, joão félix, entre outros.
esta segunda edição do “rua direita” viu pela primeira vez efectivar-se a participação dos membros da “matilha” dos cães do mar. a “matilha” é, segundo as palavras dos próprios “o resultado das oficinas de formação em teatro dos cães do mar, que começaram em 2018. neste grupo, de carácter flutuante e diverso, constituído por vários elementos que, também, integram outros grupos de teatro, todos são convidados a partilhar conhecimento e ferramentas. a matilha tem participado em iniciativas locais, com pequenos espectáculos de rua, com ‘um reino que cabia numa ilha’ (2019) ou ‘a récita’ (2021), um espectáculo de clown”.
os cães do mar são promotores de desenvolvimento cultural na cidade de angra do heroísmo, em primeira instância, sedeados que estão na sociedade filarmónica de instrução e recreio dos artista, e da ilha terceira, dos açores e de portugal, em subsequentes instâncias. iniciaram-se informalmente em 2016 e no ano seguinte constituíram-se em forma de associação. do pensamento e da ideia à acção e à concretização vai um passo de vontade. esta que se pode atribuir, como representante primeiro, a ana brum, presidente da associação e mentora deste projecto. o objectivo? produzir e criar teatro na cidade de angra.
foram “os amores encardidos de padi e balbina: uma dúbia história do revenge”, com helder xavier e ricardo ávila; foi o “rimance de mateus e da baleia”, com ricardo ávila; a “rubra flor da fajã”, um micro-espectáculo com andreia melo; foram as “intrigas e espiões no tempo de afonso vi”; a performance “humana|m3nte”, com interpretação de diana rosa e raquel raposo; foi a performance de dança na oficina d’angra, com diana rosa; a performance “inbox 0.2”, com diana rosa; foram as “cartas do brasil”, com ana brum e bianca mendes; os “ilólogos”, com bianca mendes e paulo costa; foi a “…mas muito marquesa”, de peter cann e raquel raposo; os que me consigo recordar assim de cor e com a preciosa ajuda da cronologia da página do facebook dos cães do mar.
para lá dos espectáculos, as formações: acção de formação “da estória à cena”; classe de teatro dos 7 aos 12 anos; oficina de escrita para audiodramas, com peter cann; mimo tout court – oficina de mímica e pantomima, com ricardo ávila; oficina de saltimbanco, com peter cann; workshop “da máscara neutra à máscara expressiva”, por sofia cabrita.
e as participações: festival de teatro ao ar livre de angra do heroísmo; paralelo festival de dança, organizado pelo 37.25 núcleo de artes performativas; xix festa do teatro - festival internacional de teatro de setúbal; festival internacional de teatro da póvoa do varzim, viii edição e-aqui-in-ocio; teatro micaelense, teatro faialense, entre outros.
terminou no passado dia 28 de julho a segunda edição do festival de curtas de artes performativas, que decorreu no jardim duque de bragança e que trouxe à nossa cidade curtas performances de rua, entrelaçado com variadíssimos momentos de formação, tudo em torno do teatro, da rua, e das pessoas.
desde 2021, julho é um mês de dois grandes eventos: o “rua direita” e o “festival de curtas de artes performativas”, ambos organizados pelos cães do mar, e ambos focados na cidade de angra do heroísmo.
ao assistir a estas performances, condensadas numa rua e numa estreita janela temporal entre elas, num acesso assim directo e contundente, vêm-me à cabeça as palavras de sir laurence olivier quando disse “i believe that in a great city, or even in a small city or a village, a great theatre is the outward and visible sign of an inward and probable culture.”
considerado por muitos como o maior actor de todos os tempos, olivier arrecadou quatro óscares, três globos de ouro, três baftas, três prémios da national board of review e cinco emmys, ao longo da sua longa carreira. de todas as formas de identificação de uma sociedade culturalmente viva, o teatro era condição sine qua non.
os cães do mar têm vindo a trabalhar paulatinamente na criação, promoção, divulgação e formação do teatro - nas suas mais variadas manifestações - e angra tem sido uma cidade que tem sabido acolher as suas iniciativas.
parabéns aos cães e à sua matilha, e aos seus inúmeros parceiros. estamos bem, até para o ano.