Na minha juventude, enquanto andei no liceu, pertenci à Conferência de São Vicente de Paulo. Entre as várias atividades, havia uma que me impressionava: visitar e acompanhar um pobre. Neste caso, era uma idosa, que vivia com a filha e numerosos netos. Por ocasião das visitas feitas na companhia de um seminarista, levávamos roupa, comida e a nossa palavra de conforto, para utilizar a linguagem da época.
Naquela idade, entre os 16 e 18 anos, o espírito fervia insatisfeito com as desigualdades sociais e as discussões iam germinando em busca de soluções. Praticávamos a caridade, mas nada disso nos satisfazia. Achávamos que aquele caminho não conduzia à erradicação da pobreza.
Num determinado dia, carregávamos um saco cheio de laranjas e pelo caminho um de nós exclamou: - “Seria mais útil plantar no quintal uma laranjeira”.
Dito e feito. Na semana seguinte, a laranjeira já estava plantada junto à parede, pronta para dar frutos. Responsabilizámos os netos pela sua conservação que cumpriram escrupulosamente a tarefa. Passados vários anos, encontrei um deles. Deu-me a notícia da morte da avó e, no final da conversa, despediu-se com um sorriso vivo e descomplexado: - “A laranjeira ainda lá está e todos os anos distribuímos laranjas pelos vizinhos”.
Este episódio marcou-me pela vida fora. Não desprezo os que são praticantes da caridade, mas fui assumindo outra postura que me parece mais dignificadora do ser humano. Defendo, primordialmente, um Estado Social, um Estado que assuma a distribuição da riqueza, por forma a garantir uma coesão social, um Estado que combata situações desumanas e degradantes.
O Estado Social está para além da mera caridade que perpetua a pobreza e a desigualdade; o Estado Social é solidário, deve promover a integração sem estigmas e deve criar todas as condições para que quem nasceu pobre, ou ficou pobre, possa superar essa condição, saindo do buraco em que a vida o colocou.
Neste momento de crise que atravessamos, o confronto entre estas duas visões da sociedade e do papel do Estado tem animado o debate político. As dificuldades do presente são pretexto para exterminar o Estado Social, com a justificação de ser insustentável. Não acredito que assim seja. Uma política de investimento e de desenvolvimento económico diferente da que este governo escolheu; uma distribuição de riqueza mais equitativa; uma gestão de recursos mais equilibrada, certamente contribuiria para uma sociedade diferente. Mas não. O governo optou por uma política de austeridade exagerada, que conduz ao desemprego, à recessão, ao empobrecimento.
O espantoso é que há gente que parece achar que merecemos tudo isto. Vivemos acima das nossas possibilidades, dizem uns, como desculpa para justificar a razia nos apoios sociais. Não podemos comer bifes todos os dias, exclamou outra senhora. Seria interessante conhecer a estatística da quantidade de portugueses que passa meses sem ver a cor ou a textura de um bife. Não tenho dúvidas de que há gente a viver acima das suas possibilidades, mas também não tenho dúvidas que uma parte muito significativa da população portuguesa não andou na “farra”, não andou a esbanjar o que não tinha. Estes não são certamente os culpados da situação a que chegamos.
Todavia, é contra eles que se apontam as armas. Aos que já vivem na miséria, embora haja quem diga que no nosso país não há miséria; aos que sobrevivem com alguma dificuldade acima da linha de água e passarão a ter que aguentar, como diz aquele senhor engravatado. Tudo isto se torna mais chocante quando estudos recentes mostram que cerca de 50% dos portugueses já passou por situações de pobreza em algum momento da sua vida.
Os saudosistas da caridadezinha estão de volta. Distribuam as laranjas que vos apetecer; eu, por mim, estou com aqueles que preferem plantar laranjeiras. O sorriso do neto daquela “minha pobre” foi uma lição de vida. Sem querer, eu e o meu colega seminarista, acabamos por injetar-lhe o estímulo para aprender a pescar. Pela breve conversa que tive com ele, pareceu-me um jovem consciente dos seus direitos e deveres, um jovem disposto a libertar-se das amarras sociais da nascença. Faço votos para que, nesta conjuntura de política desastrosa, aquele sorriso se mantenha. Ontem como hoje é um sinal de esperança, um sinal de luta, um sinal de dignidade.