I. Ia a crise financeira internacional no seu auge, com diversas instituições bancárias às portas da morte, e o mundo capitalista assistia, com dificuldade em interpretar, ao renascimento do Estado como garante da estabilidade socioeconómica. Até o mais empedernido liberal, que antes renegava três vezes de cada vez que alguém falava em intervencionismo estatal, clamava então pela urgência da intervenção do Estado e admitia a possibilidade de uma maior regulação do sacrossanto mercado.
Não era uma questão de convicção - percebia-se - era o medo a falar, mas certo é que, tal como as crianças apelam à mãe quando se magoam, também os maiores adversários do Estado olham para ele em súplica sempre que o mercado, depois de ter feito asneira, lhes vira as costas. É que isso de incensar as virtudes da desregulamentação e da capacidade de risco é muito mais interessante quando se trata de abrir latitude à possibilidade de enriquecer, mas, em sentido inverso, quando o que está em causa é o assumir sozinho dos riscos, perde grande parte do seu encanto.
II. Pois os mesmos que, na aflição, olharam para o Estado e lhe pediram ajuda, agora, em tempos de maior equilíbrio, voltaram à sua condição de ferozes inimigos dessa diabólica máquina de ineficiência, de inércia e de despesismo. Querem o Estado fora da economia, dizem eles; querem o mercado em formato de campo aberto, sem servidões e sem limitações ao livre espírito de iniciativa.
Por trás deste mantra preconceituoso e interesseiro estão duas supostas verdades absolutas, uma decorrendo da outra: que o Estado é um estorvo à plena concretização de todo o potencial virtuoso da iniciativa privada; e que a gestão privada, porque é privada, é sempre melhor que a pública, porque é pública. Uma como outra, sendo generalizações básicas, são, natural e regularmente, desmentidas pela realidade. Uma e outra, sendo intencionalmente maniqueístas, são simplistas e artificiais.
III. Tudo isto se torna especialmente grave quando os adversários primários do Estado se tornam governantes. É esta a situação que vivemos nos últimos quatro anos em Portugal e que, entre outros episódios menos graves, conduziu à retração do Estado Social, à desregulamentação dos mercados e à alienação de grande parte do património empresarial do Estado, culminando na recente, apressada e mal explicada privatização da TAP.
Sabemos hoje que a compra da TAP por um consórcio luso-brasileira de empresários foi, em parte, financiada pela venda posterior dos aviões, que depois serão alugados, e, em parte, pela parceria e futura entrada no capital da empresa do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), instituição financeira brasileira de capital (imagine-se só!) integralmente público. Sabemos ainda que o gestor público que na última década presidiu à Administração da TAP, o também brasileiro Fernando Pinto, vai continuar a presidir à TAP privada.
Ora, se o negócio se pagou, em parte, com recurso aos próprios ativos da TAP; se a empresa, agora privada, se vai financiar com capital público brasileiro; e se o gestor que deixou a TAP com mais de mil milhões de euros de passivo se vai manter como principal responsável pela gestão privada da TAP - então o que aconteceu foi, com base em presunções ideológicas, uma operação lesiva para o erário e interesse públicos, e não, como foi insistentemente propagandeado, uma forma de aliviar os encargos dos portugueses.
Chegados aos corredores da governação, os adversários do Estado embrulham a ideologia em folhas de Excel, e reduzem; deitam mão a todos os eufemismos técnico-financeiros que encontram, e cortam; apelam aos contribuintes para que estes não se lembrem que também são cidadãos, e vendem! Com companhias destas, não há conduta que possa concorrer contra a má fama.