I. Porque é que o legado de Mário Soares é mais importante do que a data de realização de uma sessão plenária da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores? Ou, perguntado de outro modo, porque é que homenagear Mário Soares nos Açores nunca devia ter andado a par de uma querela, mais ou menos absurda, sobre a legitimidade de se adiar por uma semana um Plenário parlamentar?
II. Em primeiro lugar, porque sem a ação política de Soares, sem a forma convicta e desassombrada como sempre se bateu pela causa democrática, por uma sociedade livre, plural e aberta, não teríamos sequer a possibilidade, fundada na lei, de defendermos ideias diferentes, quanto mais a ousadia de discutirmos, em representação de partidos políticos, interpretações diversas de um Regimento.
Mário Soares dedicou a sua vida – não só a vertente política da sua vida, mas também a pessoal e familiar – à missão de fazer de Portugal uma “terra de liberdade”, onde ninguém pudesse ser perseguido, preso ou censurado por pensar e dizer o que pensava. Fê-lo, é certo, a partir de diferentes posicionamentos ideológicos, com avanços e retrocessos, que evoluíram no pós-Guerra para o socialismo democrático. Fê-lo, primeiro, contra o jugo salazarista, com risco da sua integridade física, da sua vida pessoal e familiar e da sua carreira. Fê-lo mais tarde, contra o outro lado do espectro político, quando os resistentes comunistas do salazarismo ameaçavam, em pleno processo revolucionário, transformar-se nos autoritários líderes de uma nova opressão.
III. Mais. Na fase quente da redefinição do xadrez político-partidário do pós-25 de Abril, quando a hegemonia das esquerdas parecia comprimir e ameaçar a afirmação da direita democrática, Soares percebeu a importância de um sistema que garantisse margem de implementação ao centro-direita e ao conservadorismo moderado, de modo a que a Democracia se fizesse plena e irreversível.
Num contexto de instabilidade permanente, em que a fragilidade do processo democrático em curso se tornava notória a cada instante, pressionado à esquerda e à direita pela vontade de impor soluções hegemónicas, Soares foi um dos principais avalizadores da resistência do ideal democrático e da sua concretização sem concessões. Participou inclusivamente em soluções governativas – pouco eficazes, é verdade – com as direitas sempre que isso significou reforçar a solidez do edifício democrático.
IV. Paralelamente, desenhou a aproximação do novo Portugal democrático à Europa comunitária, como veículo de modernização do país, mas também como forma de reforçar externamente a validade da solução democrática portuguesa, e participou ativa e decisivamente, enquanto dirigente partidário e responsável governativo, na consagração constitucional da solução autonómica.
Percebeu, onde outros só viram riscos para a unidade e soberania nacionais, a importância de conformar a estrutura constitucional à geografia humana do país. Como em tudo o resto no seu percurso político, foi pragmático sem deixar de ser profundamente ideológico, sempre na procura da forma mais eficiente de implementar o seu ideário e dar concretização às suas convicções.
V. Chegados aqui, não há como não relativizar o pretenso caso político do adiamento do Plenário de janeiro da Assembleia Legislativa. Foi decretado luto nacional, o País parou para prestar uma justa homenagem a um dos pais fundadores da Democracia e, por essa via, da Autonomia. O Parlamento dos Açores, à semelhança da Assembleia da República e da Assembleia Legislativa da Madeira, suspendeu a sua atividade, que coincidia parcelarmente, no caso dos Açores, com a sessão plenária de janeiro. De modo a ser garantido um Plenário em condições normais, de duração e de iniciativa partidária, a Senhora Presidente da Assembleia decidiu adiar por uma semana os trabalhos.
Nota Final: Foi também o legado de Mário Soares que possibilitou que os partidos da oposição nos Açores não tivessem escrito uma só linha ou dito uma só palavra de pesar a propósito da sua morte. O silêncio só é uma opção política quando existe consagrado o direito de falar.