A fragilização da “memória histórica” é talvez dos maiores defeitos do sistema democrático, defeito este, que, curiosamente, é consequência de uma das maiores virtudes deste sistema político: o dar como adquirido, no nosso quotidiano, valores tão simples, como a Liberdade, a Igualdade e o Estado de Direito.
Hoje, as nossas preocupações não estão relacionadas com o facto de podermos ou não dizer ou reunir com quem nos apetece para criticar seja o que for, sem receio de consequências, - aliás, basta ir às redes sociais para verificar que, nesta matéria, há muito que ultrapassamos o limite do razoável e até da lei – ou de ser preso, sem culpa formada ou sem julgamento, como também não perdemos muito tempo a pensar, se há um serviço de saúde ou educativo que nos receba, como a todos os outros, independentemente da nossa condição financeira e social.
Estamos, genuinamente, tão convencidos destes valores basilares da Democracia, que temos a tendência de relativizar e desculpar a memória do passado, como se, o que nos dizem ter acontecido em ditadura, não encaixasse bem no quadro mental que temos de Portugal ou da nossa vivência.
Não conseguimos conceber bem, o que é que significa ser preso 12 vezes - sim, 12! - sem julgamento, sendo sujeito a interrogatório duro que incluía, murros, pontapés e privação de sono – sim, tortura! – ou talvez, nunca nos tentamos colocar no lugar de alguém, que por ter referido publicamente uma opinião diferente, ficou isolado durante um mês, numa cela minúscula, gelada e húmida, sem ver a luz do dia e sem ver ninguém. Temos dificuldade em perceber o que significa para um pai ser impedido de ver os filhos crescer ou verificar que os mesmos são alvo da cobardia da ditadura de Salazar.
Não percebemos que um ano após a revolução de Abril, Portugal esteve como um país da América latina, com 2 tentativas de golpes de estado, com todos os partidos armados e prontos para a guerra civil, com sedes de partido e de jornais assaltadas, controles militares nas ruas, manifestações e contramanifestações muitas vezes violentas e, que no final do PREC, tudo acabou por correr bem, sem banho de sangue, sem perseguições, sem ilegalizações de partidos - como muitos queriam à esquerda e à direita - estabelecendo-se liberdade democrática.
Mário Soares, quer se queira quer não, foi o protagonista referido, que esteve no lado certo da história nestes dois tempos da nossa memória. Foi um homem que lutou, duramente, por consensos no PREC, no Governo e na Presidência, conseguiu a normalidade democrática e, talvez por isso, abdicou de ser consensual, liderou o combate à II República e aí também, naturalmente e, ainda bem para nós, criou inimigos, sempre os que estiveram no lado errado da história, porque se não os tivesse feito e combatido, o destino de Portugal tinha sido outro, muito mais negativo. Aliás, estes inimigos não percebem, nem nunca perceberão, por defeito de formação, que o seu exercício de crítica livre é a principal vitória na luta de Mário Soares pelo pluralismo de opinião.
Hoje, como sempre, as preocupações da maioria, já não são os temas da nossa “memória histórica”, aparentemente garantidas, são outras, são as falhas do sistema democrático, supostamente mais graves do que a ausência da própria democracia, por serem as que se colocam presentemente, são: a azáfama do dia-a-dia, das crises económicas, do emprego que não existe ou que paga mal, dos transportes caros para o trabalho, da pensão que é insuficiente, do preço da luz que sobe, dos resultados escolares dos filhos, da ausência do tempo para o lazer, do inatingível bem-estar material e da ausência de referências.
Mário Soares compreendeu-as bem por convicção, em todos os momentos da sua longa história e tornou a sua resolução um objetivo de uma vida.
Por isso tudo, obrigado!