Opinião

Notas sobre a abstenção

Para alguns especialistas na matéria, tradicionalmente, há dois tipos de abstenção eleitoral: a má - gerada por uma revolta dos cidadãos contra o sistema social/político vigente, que acontece, sobretudo, por imperfeições do sistema democrático; e a boa - relacionada com os cidadãos que, não estando insatisfeitos com a organização social/política vigente, julgam não ser necessário incrementarem a sua participação cívica e política através do exercício do direito de voto. Temos, portanto, numa análise mais simplista, os cidadãos insatisfeitos que protestam não votando e, os que estando satisfeitos, não o fazem por não verem a organização social ameaçada. Enquanto no primeiro caso, estes cidadãos acabam por ser, naturalmente, proscritos do sistema político, com uma tendência de cada vez maior afastamento e, dificilmente, recuperáveis para o voto, no segundo caso, como se comprova empiricamente, quando há uma ameaça, para o modo de vida (entendamos assim a mudança política para facilitar a análise), votam massivamente impedindo a alteração do ‘status quo’. Este segundo grupo de abstencionistas funciona pois, nesta análise, com a “sua entrada e saída do voto” como uma força estabilizadora do sistema social/político. Esta análise, com a qual concordo, é apesar de tudo, acrescento, muito redutora, no sentido em que parte do princípio, de que estes dois grupos abstencionistas têm comportamentos sempre expectáveis e repetitivos e que mantêm sempre o mesmo peso no total de cidadãos capacidade eleitoral. Esta análise, parte também do pressuposto de que os agentes políticos, sociais, os média organizados, e as redes sociais, são variáveis estáticas, nestas dinâmicas sociais. Esta visão poderia fazer sentido, num tempo lento e ponderado, sem globalização, com instituições democráticas fortes e média independentes do poder económico, há pelo menos vinte anos. Como se comprovou com o “Brexit”, nos fenómenos populistas/extremistas na Europa e nas eleições americanas, a dinâmica dos acontecimentos é demasiado rápida para o funcionamento dos chamados “estabilizadores automáticos”. Com a “informação” imediata massificada nas redes sociais, mais próxima dos sentimentos das pessoas do que da realidade, - o que não quer dizer, necessariamente, “verdade massificada”! – os média tradicionais, erradamente, procuraram entrar em concorrência - substituindo, a “verdade” pelo “informar primeiro” ou o “facto” pelo “desejo coletivo” - e as instituições democráticas lidavam com o fenómeno como se este fosse um órgão de comunicação social normal. Estas respostas desadequadas legitimaram uma área sem qualquer tipo de regulação e controle por parte do sistema democrático e provocaram exatamente o efeito inverso ao pretendido: deram credibilidade à informação das redes sociais e permitiram as “fake news”. As consequências estão à vista: este fenómeno globalizado alterou os equilíbrios sociais e a noção de realidade, que afetaram diretamente o peso relativo e o comportamento destes dois grupos de abstencionistas que referi. Assim aconteceu, como percebemos nas eleições americanas, que os abstencionistas “antissistema”, em força, acabaram por votar em Trump, esperando a mudança, e os tradicionais abstencionistas pelo “sistema” ou não votaram, por não acreditar que “Trump” constituísse uma ameaça ou uma parte destes acabou por votar no candidato, por pensar que este pudesse reconstituir a velha “América Forte” que saudosamente recordaram.