Opinião

A “golpada” democrática

O governo de coligação de direita já tem o seu programa aprovado. A legitimação da aritmética parlamentar, feita com arranjos pós eleitorais, sobrepôs-se à legitimidade das propostas apresentadas antes do povo colocar o seu voto na urna, razão pela qual, bastas vezes, vamos encontrando gente a lamentar-se sobre o destino que foi dado às escolhas que fizeram no dia 26 de outubro.
A verdade é que pertencem a várias sensibilidades político-ideológicas os que sentiram que a democracia foi obliterada por um conjunto de líderes partidários, que, perante a oportunidade de acederem de forma espúria à gestão da coisa pública, não hesitaram em coligar-se: uns, com refinado ódio aos socialistas, outros, com ânsia de protagonismo, alguns outros, em desespero para saírem dos seus campanários políticos, e ainda mais alguns outros, que apesar de apresentarem justificadas razões para se constituírem como alternância de poder, acabaram cedendo a indisfarçados interesses. Agora, andam todos preocupados em apresentar cardápios de razões para legitimar a “golpada” que deram no povo, cujo maior mérito foi saberem aproveitar as fragilidades da tessitura do regime democrático e autonómico em que vivemos.
Mas, estou certo que um dia vão todos pagar por isso. Vaticínio que assenta no facto do nosso povo perdoar, mas não ter a memória curta e, portanto, não vai esquecer o que foi feito nas suas costas. Até talvez por saber que isso possa um dia acontecer, um deputado do PPM, aproveitou uma das suas intervenções na ALR, para apresentar uma meia desculpa aos açorianos sobre a sua precipitada decisão de casar com a coligação, pois, como confessou, não conhecia bem um dos “noivos” antes do enlace, mas que agora, felizmente, está tudo bem. Enfim, histórias de casamentos reais!
Alguns dos que se sentiram mais ludibriados com o abuso que foi dado ao seu voto vão mesmo dizendo que “votar nunca mais”, atitude política e de cidadania que acaba por desembocar no famoso fenómeno da abstenção; fenómeno, que deixa metade dos eleitores em casa, a repudiar os políticos e a não reconhecer atempadamente o interesse que a política em geral tem nas suas vidas; triste desiderato, que depois alguns pretendem interpretar através de complexas teses, quando este comportamento de escusa é tão simples de explicar: os políticos não podem fazer depois das eleições o que não anunciaram ou comprometeram-se a fazer antes delas!
Mas, alguma complexidade pode estar subjacente à urdidura, portanto, algo escapou à perceção que habitualmente enforma o voto do povo. Estou certo que uma das razões escapatórias será certamente o velho problema da democracia, enquanto regime de liberdades, que acaba garantindo a liberdade e direitos àqueles que querem acabar com ela, ou seja aos seus próprios inimigos. A “brancura” do texto programático apresentado pelo partido Chega ao Juízo constitucional, não chega para alterar os confessados propósitos de serem racistas, xenófobos e, claramente, contra o sistema democrático e constitucional em que vivemos em Portugal.
A democracia não devia permitir que o Chega tivesse representação parlamentar e os partidos do sistema democrático também não o deviam fazer, como estão fazendo, arcando, isso sim, com a responsabilidade de desenvolverem políticas sociais e económicas que antecipassem o acantonamento de votos-franja naquele partido.
Também estou certo, que uma outra resposta para a “golpada” democrática a que assistimos, decorre do facto do sistema eleitoral que tem vindo a sustentar a nossa Autonomia, que, na pressa de assegurar a todos os açorianos uma representação na ALR, tem permitido que o voto da representatividade das ilhas mais pequenas ganhe uma “qualidade” que volatiza por completo o voto da proporcionalidade das ilhas maiores, situação que tem aberto o corredor por onde garbosamente se tem esgueirado o PPM.